Surgidas nas livrarias em outubro, "são edições históricas”, dedicadas a dois Prémios Nobel da Literatura, com uma “seleção de traduções bastante rigorosa”, e “era bom que isso pudesse continuar”, disse à agência Lusa o encenador, a propósito do volume "Máscaras Nuas" dedicado a Pirandello, que organizou com a tradutora Mariana Maurício, e do "Teatro completo" de Samuel Beckett, que lhe foi encomendado, e que conta com diferentes traduções, duas das quais da sua autoria, mais o texto final que assina, sobre a representação do autor em Portugal.

É “engraçado” que os livros “possam voltar a ser lidos”, que o “teatro possa voltar a ser vivido”, porque “gosto muito disso”, frisou Jorge Silva Melo, acrescentando que ainda gostava de ver publicada uma “seleção boa” das peças de Molière, “de que há muito boas traduções”, ou de Mariveaux.

Quando cresceu – “e já foi há muito tempo” -, havia sempre livros de teatro editados pelas principais editoras e “eram livros normais”. “E é bom que sejam livros normais”, sublinhou.

A edição de “Máscaras nuas”, na coleção Itálica da Imprensa Nacional Casa da Moeda, e o “Teatro Completo” de Samuel Beckett, pelas edições 70, do grupo Almedina, são acontecimentos que não “ocorrerão muitas vezes”.

Embora tenham sido preparados em tempos “muito diferentes”, editar “quase em simultâneo, em Portugal, um grande autor contemporâneo, como Beckett [1906-1989], e um pré-contemporâneo, como Pirandello [1867-1936], é de enorme importância”, sustentou, ainda que, neste momento, se tenha voltado a escrever muito teatro em Portugal.

É o caso do Teatro Nacional D. Maria II, que já publicou bastante - embora atualmente tenha reduzido a publicação - e também de autores portugueses mais novos, que têm publicado bastantes textos de teatro, apesar de o fazerem em “edições pequenas e de âmbito restrito”, observou.

É “bom e engraçado” que isso aconteça, porque, antes, “era através dos livros que as pessoas conheciam as peças de teatro que não conseguiam ver”.

“Agora quando ficámos confinados não podíamos ver teatro e inventámos aquela coisa do 'streaming'", mas a leitura de teatro em livro “permite mais aberturas ao leitor, ao espectador do que o streaming que fixa uma imagem ali que vai ficar para sempre e que eu, por exemplo, detesto”, sustentou à Lusa.

Para Jorge Silva Melo, é importante que a publicação de livros de teatro “não morra”, até porque como o teatro tem “uma linguagem muito rápida - diálogos, quase sempre -”, “não pode ter notas de rodapé”. Já o “livro fixa partes, e permite que a gente imagine o resto”.

Para o ator e encenador, que também é diretor dos Artistas Unidos, “Máscaras nuas” é “um instrumento imprescindível” para quem faz teatro, pois Pirandello é “um autor genial e um dos autores cruciais do século XX”.

"Até agora, só havia publicadas 'Henrique IV' e 'Seis personagens em busca de autor', em várias traduções diferentes e pouco mais”, frisou.

O livro contém “mais de metade” das peças que o autor italiano escreveu e que “instalou aquela coisa que em Portugal terá sido Fernando Pessoa a instalar: a dúvida”, observou.

“A dúvida permanente, 'sou, não sou', 'deixa de ser', 'quem é esta personagem', 'sou aquele que tu quiseres', ou seja, quem são essas personagens à procura de um autor… [Tudo isso] conta a minha história”, enquanto personagem, afirmou, sublinhando tratarem-se dos mesmos temas que aparecem também em Fernando Pessoa, quase contemporâneo de Pirandello.

“São os autores mais semelhantes que conheço e intriga-me até que não tenha havido proximidade entre eles”, sublinhou Jorge Silva Melo, recordando que Pirandello veio a Portugal em 1931 para assistir à estreia mundial da sua peça “Um sonho, mas talvez não” (encenada por Amélia Rey Colaço, no D. Maria II), e para participar no V Congresso da Confederação Internacional da Crítica Dramática e Musical.

“Máscaras nuas”, nome dado por Pirandello à quase totalidade da sua obra dramática, contém uma seleção de 25 peças, seis das quais inéditas, a partir de traduções existentes “já provadas e experimentadas em palco, mas não publicadas” e de outras encomendadas, mas não muito vistas reunidas por Jorge Silva Melo e pela tradutora Mariana Maurício.

A edição em livro soma 1.600 páginas e integra uma “tradução absolutamente admirável e perfeita de uma peça inédita”, que encontraram na Torre do Tombo, nos arquivos da Censura, traduzida pela atriz, encenadora e dramaturga Maria Matos”, disse.

Sobre o “Teatro completo” de Samuel Beckett, Jorge Silva Melo frisou tratar-se também de uma “recolha feita sobre peças já experimentadas, já estreadas ou já feitas, quase todas”.

"À espera de Godot", "Todos os que caem", "Rascunho radiofónico", "A última gravação de Krapp", "Aquela vez", "O quê onde" e "Trio fantasma" contam-se entre as 31 peças que preenchem o "Teatro completo", com cada uma a ser precedida por uma nota explicativa sobre quando foi escrita, em que língua, ou que edições foram consultadas para a tradução.

No final do livro, Jorge Silva Melo assina ainda um texto intitulado "Beckett representado em Portugal", no qual percorre as peças do dramaturgo irlandês postas em palco no país, desde a estreia, "rodeada de polémica", de "À espera de Godot", em abril de 1959, no Teatro da Trindade, pela companhia Teatro Nacional Popular, dirigida por Francisco Ribeiro (Ribeirinho), até espetáculos mais recentes, como uma versão de "Todos os que caem", dirigida por João Mota, em 2006, no Teatro da Comuna.

Inicialmente encomendada pelo fundador da Quasi edições, Jorge Reis-Sá, ao encenador, esta edição do "Teatro completo" de Beckett conta com traduções de José Maria Vieira Mendes, Francisco Frazão, Luis Miguel Cintra, Margarida Vale de Gato, Miguel Esteves Cardoso, Vasco Gato e Rui Laje, além do próprio Silva Melo.

Com o fecho da Quasi, em 2009, o livro “andou por vários sítios”, e a Livros Cotovia “ainda tentou pegar naquilo”. Mas já não havia meios para o fazer, coincidindo depois com o fim da editora fundada por André Jorge, que acabou por fechar em novembro de 2020, quatro anos após a morte do fundador.

“Até que um dia recebi 'e-mail' das edições 70, do Grupo Almedina, a dizer que estavam interessados em publicar todo o teatro de Beckett, o que é uma coisa que poucos países têm, só Inglaterra”, disse Silva Melo à Lusa.

O dramaturgo irlandês “era um doido absoluto, escrevia em várias línguas e ninguém sabe qual é a versão definitiva de 'À espera de Godot'”, observou, acrescentando que, apesar de o dramaturgo achar que era a inglesa, “mesmo assim quando a encenou, fez cortes, modificou e alterou”.

Beckett escrevia ora em francês, ora em inglês, e os textos nunca são iguais, pelo que não é fácil compilar as obras completas do autor de “Dias felizes”. Mas “em francês é menos fácil”, acrescentou.

E Beckett é “uma personagem absolutamente fundamental na 'destruição' do teatro”, tal como se fazia outrora, já que operou “um tremor de terra” e “anulou uma série de leis que havia dentro” da arte.

“Sem ele não podemos viver, com ele é difícil viver”, sustentou Jorge Silva Melo, citando, a título de exemplo, a peça “Breath”, talvez a mais curta de teatro em que o pano do palco se abre, ouvindo-se uma respiração profunda e o pano voltar a fechar.

Ele é o homem que destruiu completamente todas as razões do teatro e no qual, “curiosamente, muitos dos grandes encenadores não pegaram”, afirmou Jorge Silva Melo.

Como Beckett era o encenador das suas próprias peças, quando se pega numa peça dele, “está lá tudo; é impossível fazer diferente”. Então os encenadores, que queriam ser “também autores, adoravam-no, mas nunca lhe pegavam”.

Foram “sempre os atores que se mantiveram fiéis ao Beckett”, como aconteceu em Portugal, com Glicínia Quartin, que teve a iniciativa de, em 1968, estrear “Dias felizes”, na Casa da Comédia, tendo ido buscar Artur Ramos para encenar a peça.

Ou como aconteceu com a atriz francesa Madeleine Renaud, que convidava Roger Blin para encenar; ou com a atriz inglesa Billie Whitelaw, em Londres.

Beckett “esvaziou o teatro, mas nós temos de estar permanentemente em contacto com a obra dele, que é fulcral”, frisou Jorge Silva Melo.

Além de do teatro de Brecht, e de "seleções muito bem feitas" de Goldoni e de Ibsen, editadas pelos Livros Cotovia, há muito pouca coisa de teatro editada em Portugal nos últimos anos, acrescentou o encenador, que mantém a publicação da coleção "Livrinhos de Teatro", dos Artistas Unidos, em parceria com a Livraria Snob.

“Era bom que se pudesse continuar a publicar teatro, já que há traduções muito boas e rigorosas em Portugal”, concluiu.

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