O rock começou por ser música marginal, lembram-se? Levou anos a implantar-se e o facto de se ter tornado mainstream durante cinco décadas – com períodos mais ou menos apagados pelo meio – é que é digno de nota, resistindo a agressões regulares de géneros concorrenciais. Hoje, saiu novamente do palco principal, mas não desceu aos níveis de culto e nicho em que se colocaram o disco, o jazz ou a folk. E, ao mesmo tempo, evoluiu, abandonando o formato clássico do quarteto baixo/bateria/guitarra/voz.

Com o advento dos computadores, softwares e Digital Audio Workstations que permitem a qualquer um produzir música, a tendência primária e facilitadora é fazer música sozinho. E tornando-se gradualmente aceites os eventos ao vivo (notem que lhes chamo eventos ao vivo e não concertos) em que tudo está pré-gravado e se canta ou rima por cima, era expectável o crescimento de géneros individualistas como a eletrónica ou o rap.

Tocar instrumentos organicamente, conjugar vontades, hábitos e disponibilidades de várias pessoas para criar ou reproduzir música organicamente, é um esforço bem maior do que teclar num computador e passear o rato com total poder de decisão. Uma banda com músicos orgânicos tem além disso custos de espaço (sala de ensaios), instrumentos, equipamentos; o seu transporte, alimentação, alojamento, toda a logística é mais cara; atualmente, por cada grupo que ensaia regularmente com instrumentos deve haver pelo menos 50 indivíduos a produzir música no seu computador, em qualquer sítio. O que aconteceu, no entanto, não foi tanto a diminuição de artistas a tocar instrumentos verdadeiros. O que aconteceu é que outros 50 indivíduos que não apostariam na música como carreira profissional passaram a fazê-lo. E o que produzem no computador é eletrónica, hip hop, pop alternativa tipo Billie Eilish, etc. O virtuosismo “geek” da programação contrapôs-se ao virtuosismo na execução orgânica e ao “groove” que o sentir humano exponencia.

Billie Eilish diz que a Síndrome de Tourette é
Billie Eilish créditos: AFP

Mas o rock não saiu incólume da evolução que o digital trouxe e o seu modelo de negócio foi aliás o mais afetado: sendo a principal fonte de receitas de um músico o cachet pago pelas suas atuações ao vivo, não é difícil concluir que custa bem mais produzir um concerto com cinco músicos a tocar ao vivo em palco, do que um evento em que o artista traz o instrumental (e parte da voz) numa pen, pega num microfone e debita por cima. Considerando que um Post Malone atrai o mesmo número de fãs ao Sudoeste como os Foo Fighters ao Alive, note-se que o cachet do primeiro ronda os 200.000 dólares e o dos segundos anda para cima de 1.000.000 dólares. Consequência obvia, a proliferação de eventos hip hop e edm e o desaparecimento gradual dos artistas rock dos festivais. Menos trabalho e exposição para os artistas rock.

Hoje o reputado Coachella trata com mais deferência uma boyband como os Brockampton ou uma girlband coreana como as 2NE1 do que qualquer artista rock. Em 1999, quando nasceu, e nos anos subsequentes, o Coachella ganhou nome com uma programação multigénero em que o rock tinha posição de destaque. At The Drive In, Belle & Sebastian, Ben Harper, Blur, The Cure, Dandy Warhols, Foo Fighters, The Hives, Iggy Pop, Jack Johnson, Morrissey, Muse, Oasis, Pavement Tool, Rage Against The Machine, Perry Farrell e os Jane’s Addiction, Pixies, Queens Of The Stone Age, Radiohead, Red Hot CHilli Peppers, Siouxsie & The Banshees, The Strokes, Weezer e White Stripes, foram alguns dos músicos que pisaram o palco principal nas primeiras cinco edições, misturados com nomes do hip hop e da eletrónica como The Roots, Gang Starr, Jurassic 5, Gil Scott-Heron, Richie Hawtin, Nightmares On Wax, Moby ou Chemical Brothers. Na edição de abril de 2022, nem um rocker pisou o palco principal. O oposto do espírito e critério que fez nascer o primeiro festival de rock na América, o Fantasy Fair And Magic Mountain, organizado por uma rádio de São Francisco. Mais de 30 artistas atuaram gratuitamente, entre os quais os ícones musicais da época: The Byrds, The Doors, Grateful Dead, Jefferson Airplane. Foi uma semana antes do Festival de Monterey e dois anos antes de Woodstock. Glastonbury, em Inglaterra, só nasceria três anos depois, em 1970 e, desde o início, pôs em palco bandas e DJs, mas estes muito mais como animadores entre concertos.

Metallica
Metallica créditos: AFP

Hoje, DJs como David Guetta e rappers como Megan Thee Stallion ou A$ap Rocky são os cabeças de cartaz em vários festivais de elevada reputação. Os rockers no entanto continuam a encabeçar cartazes: Eagles Of Death Metal, Faith No More ,Green Day, Guns N Roses, The Killers, Kiss, Korn, Metallica, Muse, Nick Cave & The Bad Seeds, Nine Inch Nails, Paul McCartney, Pearl Jam, Pixies, The Smashing Pumpkins, Stevie Nicks, The Strokes, Wilco, Weezer, The Who… todos fizeram parte dos alinhamentos de grandes festivais deste ano, em “primetime slots”. Mas as questões são várias: a maioria tem o dobro ou o triplo da idade do publico alvo da generalidade dos festivais; a disponibilidade de artistas rock com capacidade para atrair multidões é cada vez mais reduzida, enquanto o oposto (artistas de hip hop e edm) cresce de dia para dia.

Mas não, não morreu. Parece aliás estar a sair de um certo torpor com a chegada de um novo tipo de artistas rock aos circuitos: Machine Gun Kelly esteve ao lado dos Metallica (mas também de Doja Cat, Dua Lipa e J. Cole) no Lollapalooza Chicago e entre Justin Bieber e Lil Wayne no Summerfest de Milwaukee; Dirty Honey no Beale Street de Memphis com os Smashing Pumpkins, Lindsey Buckingham dos Fleetwood Mac, os Toad The Wet Sprocket e os recentes Soccer Mommy. Não tocam na rádio, não se vêem na TV e os jornais não falam deles. E os fãs de sempre do rock nem sequer aceitam muito bem gente que veio do rap para o rock, gente que faz rock sem a Santíssima Trindade dos instrumentos base (baixo/guitarra/bateria). Tal e qual antes dos anos 50 do século passado, quando o rock nasceu e era outlaw: os fãs adultos rejeitaram-no, os adolescentes idolatraram-nos cimentando a noção do “generation gap”.

Yungblud, jovem inglês de 24 anos, tocou a 30 de abril de 2022 no Campo Pequeno. Em Portugal não toca na rádio e os media em geral pouco falaram da sua vinda. E, no entanto, o resultado é este: depois do concerto, os fãs portugueses esperaram-no no exterior e ele correspondeu, o que um rocker da velha guarda provavelmente não faria. E acabou por ser notícia.