Filha de um veterano de guerra alcoólico e grávida do namorado que acaba de falecer, Alice Maia decide fugir de Portugal e rumar à Nova Iorque de todos os sonhos, onde se vai deparar com uma cidade caótica e cheia de figuras singulares, onde sonhos e pesadelos parecem andar de mãos dadas. “Alice, Nova Iorque e Outras Histórias”, que chega esta semana às salas portugueses após uma digressão por festivais internacionais, é a primeira longa-metragem de Tiago Durão, protagonizada e produzida por Sofia Mirpuri, uma dupla que esteve à conversa com o SAPO Mag.

É na grande cidade carinhosamente apelidada de Big Apple que se assume a profunda catarse de um leque de figuras fúteis e subjugadas às necessidades do primeiro mundo, cujas vidas se desenvolvem sob a luz de uma emigrante portuguesa, Alice (Sofia Mirpuri). Neste jogo de narrativas cruzadas e histórias paralelas, existe um gesto de homenagens e vénias a autores fundamentais desta geografia, seja Woody Allen (referência citada), Hal Hartley ou Robert Altman: “Tenho uma aproximação ao cinema, e à dramaturgia também, ao teatro, que se baseia muito nos autores", sublinha Tiago Durão. "Eu cito Shakespeare, Edward Albee, assim como, é evidente, Woody Allen e o Altman nessa questão das histórias cruzadas. Eu colo-me muito aos outros autores, como diria o Picasso – os grandes autores copiam, os geniais roubam.”

A experiência de Tiago Durão com Nova Iorque “resume aquilo que nós chamamos de ‘sonho americano’. Eu embarquei para fazer uma curta com a minha grande amiga Madalena Mantua, que também é atriz do filme… e acabei por concretizar essa curta-metragem e depois limitei-me a passear por Nova Iorque", afirma a rir.

"Apaixonei-me pela cidade e acabei por ficar três meses, que era o tempo que o meu visto permitia. Regressei a Portugal, apliquei num novo visto, passei por Casablanca e voltei à cidade. Ou seja, até a minha ida a Nova Iorque se assemelhava a um filme dos anos 40, o que alimentava ainda mais o sentimento de sonho americano” revelou o realizador, afirmando que apesar do seu filme apresentar uma cidade “mais próxima do cinema de Woody Allen”, ele não viveu esse lado de Nova Iorque nesta sua experiência.

O guião havia sido trabalhado desde 2014, tendo passado por “várias modificações” e “vontades”. Com a colaboração de António Rodrigues e André Tavares, Tiago Durão conseguiu, através de um “processo orgânico”, concentrar-se numa demanda quase em sintonia com Lewis Carroll por um conjunto de “falhados com alma dentro”.

“Aqui entra um pouco de Portugalidade, de Pessoa. Como costumava dizer aos meus atores, estas personagens falharam em tudo na vida.”, explica o realizador, que se debruça na prioritização das futilidades que servem de características destas mesmas figuras.

Para Tiago Durão era importante condensar estes dramas mesquinhos das grandes metrópoles como um espelho da nossa sociedade contemporânea: “vivemos tão fechados na nossa bolha que essa futilidade se tornou um código social. A sociedade contemporânea baseia-se nesta fogueira de vaidades", defende. "As artes são o espelho dessa mudança sociocultural. O que se instalou hoje em dia foi a massificação e a industrialização, como aconteceu, por exemplo, com o Cinema. Já Godard dizia que o Cinema não existe, porque falhou a ser instrumentalizado por essa mesma massificação, e por isso perdeu esse estatuto de obra de arte. E este filme é também um produto dessa massificação e industrialização. Não é cinema de arte, não tenho a ilusão que fiz aqui um Visconti ou até mesmo um Godard”, afirma no meio de uma gargalhada.

Alice, Nova Iorque e Outras Histórias
Alice, Nova Iorque e Outras Histórias

Refletindo sobre o atual cinema nacional, Tiago Durão demonstrou admiração e preocupação com o nosso património e produção audiovisual: “Tenho muito em conta o cinema português, por isso gostaria de fazer um parêntesis e sublinhar que este filme não representa o cinema português. Trata-se de uma abordagem claramente fora dos parâmetros desse cinema.”

Na verdade, o cineasta define-se como “um grande admirador do cinema de Oliveira, da Leonor Teles e da Teresa Villaverde. São algumas das melhores abordagens do Mundo e que não ficam nada a dever à Nouvelle Vague ou ao neorealismo italiano. O que acontece é que é um cinema que se baseia na nossa portugalidade, ou seja, é um cinema que pode sair das nossas fronteiras, mas a questão é se sair não irá desvirtuar esse classicismo.”

Com efeito, conclui, “o nosso cinema peca por não ser exportado, por não ser vendido lá fora da mesma maneira como os grandes bastiões do cinema mundial. Não sabemos como o devemos exportar.”

Quanto a novos projetos, o realizador referiu estar de momento a terminar “Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente”, “uma incursão ao cinema de época”. Tiago Durão irá contar novamente com a participação e produção de Sofia Mirpuri, além de atores como Sérgio Coragem e Teresa Corte-Real, porém garantiu que apesar desta nova experiência, não tem a intenção de se aproximar ao cinema de Manoel de Oliveira: “Um dos grandes pecados do cinema português é o de existir gente que se cola ao cinema dele ou que deseja fazer o cinema dele”. Ao invés disso referiu inspirar-se nas “Três Tragédias” do poeta espanhol Federico García Lorca.

Sofia Mirpuri: uma (outra) Alice no País das (Não) Maravilhas

Também ao SAPO Mag, a jovem atriz e produtora Sofia Mirpuri falou sobre o seu contributo no filme de Tiago Durão, que encara como o início de uma aventura e de uma desejada carreira internacional. A intérprete explica que tudo começou através da curta-metragem em que trabalhou com o amigo e realizador. Após a experiência, sugeriu de seguida prosseguirem a colaboração num projeto de maior duração.

Na altura, Mirpuri estudava teatro na Atlantic Theater Company e convidou vários colegas a integrar o elenco da longa-metragem, inicialmente planeada como uma web serie: “Enquanto atores, é muito importante criar os nossos próprios trabalhos”, explicou, “por isso tivemos que pensar num projeto onde pudessemos juntar estas diferentes pessoas com diferentes backgrounds e objetivos.”

VEJA O TRAILER "ALICE, NOVA IORQUE E OUTRAS HISTÓRIAS".

No conjunto, “Alice, Nova Iorque e Outras Histórias” é composto por 11 protagonistas, todas influenciadas diretamente ou indiretamente pela vinda da ‘estrangeira’ Alice. “Criamos esta personagem como um fio condutor daquelas figuras”, revela Sofia Mirpuri, que esteve presente desde o início do processo de criação do seu papel.

O título original, “Tales from the Rabbit Hole: A Curious Kitsch Novel”, sinaliza uma das referências subliminares do filme, o célebre livro de Lewis Carroll “Alice no País das Maravilhas”: “Nova Iorque é um lugar desconhecido e surreal para ela. A Alice caiu nesta toca do coelho de forma a sair dos conflitos de Portugal. Uma espécie de persuasão do que chamamos de sonho americano. Porém, o que ela encontra aqui é tudo menos o que imaginava, tão diferente desse sonho americano”, refere.

Alice, Nova Iorque e Outras Histórias
Alice, Nova Iorque e Outras Histórias

Com esperança e algum humor, Alice pisa, pela primeira vez, o território da badalada cidade que nunca dorme, sendo recebida com uma representação das severas políticas de imigração da administração Trump. E o filme acompanha esse momento como uma distorção do termo “punch the nazi”, neste caso com o esmurrar de um apoiante do movimento MAGA (Make América Great Again) em tom de sátira sarcástica, embora Mirpuri deixe claro que toda essa sequência se resumia a um gesto firme de solidariedade com os imensos colegas do meio artístico norte-americano, muitos deles estrangeiros e ameaçados por esta onda ideológica.

Já sobre novos projetos e perspetivas para o futuro, Sofia Mirpuri revela que “quando acabamos de rodar o "Alice...", embarcamos noutros projetos, entre os quais um novo filme do Tiago, “Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente”, que se encontra, de momento, em pós-produção. A pandemia alterou por completo os meus planos. Porque o meu objetivo era ter uma carreira que conjugasse o trabalho em Portugal e no estrangeiro. É óbvio que representar o meu país, assim como a sua língua, que é uma coisa inigualável. Por isso, veremos o que o meu país reserva para mim. Aliás, veremos o que este jornada me guarda”, conclui.