O clássico do cinema mudo “Amor de Perdição”, de Georges Pallu, regressa esta semana aos ecrãs de cinema, com orquestra ao vivo a interpretar a música original, para celebrar o centenário da sua estreia.

A primeira sessão deste filme-concerto dedicado à Invicta-Film (produtora de cinema que se destacou nos anos de 1920, com produções relevantes para a história do cinema em Portugal) acontece no sábado, na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, e, no dia seguinte, estreia-se no Coliseu do Porto.

Com a duração de 190 minutos, este clássico literário de Camilo Castelo Branco adaptado ao cinema vai ser apresentado publicamente pela primeira vez em nova cópia digital, acompanhado com orquestra ao vivo, que interpreta a partitura original composta por Armando Leça, reconstruída e adaptada por Nicholas McNair.

“Na época eram acompanhadas as projeções de filmes com música ao vivo, que podia ser música de repertório escolhida pelo chefe de orquestra de cada cinema ou, mais raramente, em Portugal e fora, encomendas de partituras a compositores [...] para aquele filme do princípio ao fim. Foi o caso de ‘Amor de Perdição’”, explicou à Lusa Tiago Baptista, diretor do departamento de arquivo da Cinemateca (ANIM - Arquivo Nacional das Imagens em Movimento).

O responsável reconhece que as três horas de duração do filme são “um grande desafio para o público contemporâneo”, mas admite que haja “muito interesse, porque, apesar de tudo, estas reconstituições musicológicas de partituras originais são raras e o facto de o acompanhamento não se limitar ao piano é raro”.

“Na nossa sala e no contexto europeu, é mais frequente encomendarem-se partituras novas do que fazer este trabalho de reconstituição histórica e musicológica das partituras, e tentar ir ao que seria o ensemble de época. Estamos a tentar fazer uma aproximação ao que teria sido a experiência de ver este filme projetado com música há cem anos. É raro e gera interesse e curiosidade reconstituir não só o filme ou a música, mas o espetáculo no seu conjunto, um trabalho de museu”, acrescentou.

Segundo Tiago Baptista, este filme “não tem grandes perdas de imagens e já tinha sido restaurado pela Cinemateca nos anos 90”.

“Estamos a olhar para uma cápsula do tempo do que seria a representação teatral da altura, porque a Invicta-Film fazia questão de contratar os principais atores de teatro. Era o ‘star system’ que tínhamos”, destacou.

Quanto à música, a partitura original – conservada no espólio do compositor, na Biblioteca Nacional de Portugal – está incompleta, com “algumas lacunas”, naturais devido à sua antiguidade, mas estas “foram reconstituídas por Nicholas McNair, que as interpreta ao piano: muitas partes em que ouvimos apenas o piano sem as cordas, são recriadas pelo [compositor] Nicholas McNair”.

As secções completas da partitura são todas interpretadas pelo ensemble de piano e cordas dos solistas da Orquestra Metropolitana de Lisboa (OML), dirigidos pelo maestro Cesário Costa.

Contudo, durante a exibição do filme há mesmo “lacunas” musicais, ou seja “espaços de silêncio deliberados, que são característicos das composições de Armando Leça”.

A razão para estes momentos de ausência de música ainda são estudados, mas crê-se que, “por um lado, como a partitura é muito longa, seriam momentos de pausa e descanso para os músicos, por outro lado, permitiam leituras dramáticas e narrativas: o facto de não existir música em certos momentos, sublinha a ação que podemos ver nas imagens”, afirmou Tiago Baptista.

O contrário também acontece, já que a cena da “morte da Teresa tem uma música muito dramática, e há relatos das plateias a chorarem muito com essa música”, acrescentou.

Um projeto ambicioso

A música para o “Amor de Perdição” ocupa um lugar particular na história do acompanhamento musical de cinema mudo em Portugal, já que a partitura original de Armando Leça foi a primeira a ser recuperada, reconstruída e interpretada, graças à iniciativa e ao trabalho da maestrina Gillian Anderson e do pianista Nicholas McNair, na década de 1990.

Para esta exibição do filme, os materiais musicais foram estudados e transcritos por uma equipa de musicólogos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova, constituída por Manuel Deniz Silva e Bárbara Carvalho.

“Aqui acabamos também por captar os públicos melómanos e dos espetáculos de música, e isso é muito interessante, porque são públicos que não são normalmente os da Cinemateca e, deste modo, passam a conhecer a sala, e isto é interessante também como captação de novos públicos”, destacou Tiago Baptista.

“Amor de Perdição” é o terceiro de um conjunto de 'filmes-concerto' dedicados à Invicta-Film, todos realizados pelo francês Georges Pallu, depois de “A Rosa do Adro” (1919) e “Os Fidalgos da Casa Mourisca” (1920).

Esta iniciativa insere-se num projeto mais ambicioso da Cinemateca Portuguesa, que quer digitalizar todo o cinema português, incluindo o cinema mudo.

“Queremos digitalizá-lo e temos vindo a fazê-lo ao longo do tempo. Dentro do cinema mudo, temos o projeto de fazer uma caixa com todos os filmes da Invicta-Film, que era a produtora mais importante do cinema mudo: adaptava romances do cânone literário português e contratou vários realizadores estrangeiros para virem lançar as bases da realização de cinema em Portugal”, contou Tiago Baptista.

A imagem digitalizada e a música, interpretada pelos solistas da OML, que será oportunamente gravada, resultarão depois numa cópia digital de alta-definição (DCP) para projeção em sala, assim como numa nova edição em DVD da Cinemateca, que dará continuidade à coleção de títulos do cinema mudo português, como já aconteceu com “A Rosa do Adro”.

“Esperamos ter uma 'janela' para trabalhar com os músicos em janeiro, para fazer a gravação dos dois filmes [“Os Fidalgos da Casa Mourisca” e “Amor de Perdição”] em estúdio”, adiantou Tiago Baptista, que tem a expectativa de poder lançar os DVD no primeiro semestre do próximo ano.

A reconstituição e interpretação pública ao vivo de “Amor de Perdição” resulta de uma parceria institucional entre a Cinemateca Portuguesa, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o Coliseu do Porto e a Ágora – Cultura e Desporto.