O criador e argumentista David Simon é uma espécie de Oliver Stone em versão televisiva, a tirar constantemente o pulso à América em tópicos altamente divisórios que resultam em séries memoráveis como "The Wire", sobre o crime organizado e o impacto social nas ruas de Baltimore, "Treme" que incidia na vida, a política e a sociedade de Nova Orleães pós-Katrina, e "Generation Kill" sobre a primeira fase da invasão americana no Iraque em 2003.

Todas estas séries são produzidas pela HBO de um autor que é sinónimo de Home Box Office mas que é também alguém que coloca o dedo na ferida e alerta sobre os males da América moderna.

O seu novo testamento, a minissérie "Show Me a Hero" (um título baseado numa afirmação de F. Scott Fitzgerald "Show me a hero and I'll write you a tragedy") é mais um objeto para a posteridade que olha para o passado, mais precisamente para há 25 anos atrás, num momento em que se pedia a partilha do espaço físico e geográfico de uma cidade branca nos Estados Unidos.

A minissérie conta com o extraordinário Oscar Isaac no papel de Nick Wasicsko, o mayor mais jovem dos Estados Unidos em 1987, que tem uma revolução entre mãos quando o governo federal obriga a cidade de Yonkers, um subúrbio/dormitório em Nova Iorque, a construir 200 fogos de habitação social e sustentável numa comunidade de classe média branca de 200 mil habitantes. A par deste desenvolvimento também observamos uma história de amor com a relação de Nick Wasicsko com a sua futura esposa (Carla Quevedo).

A história verídica é baseada no livro homónimo de Lisa Belkin, uma jornalista do New York Times. A adaptação pertenceu a David Simon e William F. Zorzi, ambos tinham colaborado no jornal The Baltimore Sun e na série "The Wire".

A génese de "Show Me a Hero" começou em 2001, os autores ainda estavam a terminar as filmagens de "The Corner" quando o livro de Lisa Belkin chegou às mãos de William F. Zorzi. Os autores fizeram a pesquisa e estiveram em Yonkers em 2002 a falar com as pessoas da cidade. Os anos passaram-se e as outras séries de David Simon acabaram por ultrapassar a adaptação do livro de Lisa Belkin. Mas, a questão da raça é um tópico quente que nunca sai de cena nos Estados Unidos e anos mais tarde a HBO decidiu avançar para o projeto.

O realizador Paul Haggis não pensou duas vezes e embarcou na minissérie por ser um admirador de David Simon e pelo desafio de realizar pela primeira vez algo que não escreveu ao dirigir todos os seis episódios. A escolha foi a mais acertada, já que o oscarizado Paul Haggis consegue atingir de forma subtil o efeito mosaico nesta história com uma realização pouco interventiva como se fosse uma mosca na parede.

O elenco de luxo combina veteranos como Alfred Molina, Catherine Keener, Winona Ryder e James Belushi com muitos e promissores talentos. Assim como a legião de atores que saiu de "The Wire" aqui também há revelações como Carla Quevedo, Natalie Paul, Ilfenesh Hadera e a relativa confirmação de Jon Bernthal.

Esta narrativa de divisões e profundas desigualdades raciais e sociais numa cidade de 200 mil habitantes tem um protagonista que decide ser responsável e governar a pensar nas pessoas e na comunidade como um todo. É uma história com eco global num mundo que se afirma plural desde que as pessoas, leia-se, as maiorias e a balança do poder não seja afetada. A série cria uma manta de retalhos que demonstra as várias dimensões de um enredo que nos fala de integração social e económica de comunidades não brancas.

O programa governamental de habitação social que surgiu com o New Deal, foi um dos mecanismos mais fortes da recuperação económica na pós- Grande Depressão de 1929, mas quando desaguamos nos acontecimentos da série a questão que se coloca é o porquê de construir casas para os pobres. É curioso que em 2015, e passado quase 30 anos desta história, a mesma retórica e o debate entre governo federal e as forças locais ocorra neste momento em duas cidades a norte de Yonkers.

Em "Show Me a Hero" encontramos diferentes histórias das várias coordenadas sociais que formam o microcosmos de Yonkers, a começar pelos habitantes do bairro social: uma emigrante (Carla Quevedo) de Porto Rico que deseja cuidar dos seus filhos; uma jovem afro-americana (Natalie Paul) que tem de cuidar de um recém-nascido; uma senhora de meia-idade (a excelente LaTanya Richardson Jackson) que abandona o emprego por falta de visão. Este é um dos lados da divisão racial que ultrapassa os clichés das drogas e da violência que definem os bairros sociais em todo mundo, é um olhar sóbrio e real de David Simon.

Na outra margem, as divisões políticas que preferem o populismo ao progresso e o egoísmo hipócrita dos políticos e cidadãos brancos da cidade que utilizam todo o típico de demagogia para fazerem oposição.

A série conta com 12 temas de Bruce Springsteen, uma representação musical que é um tributo ao espírito do protagonista Nick Wasicsko e de uma América cada vez mais utópica com os seus valores e ideais perdidos.

Os próximos projetos de David Simon deixam-nos expectantes: as suas novas histórias vão rondar a indústria porno em Nova Iorque nos anos 70, o cancro legislativo em Washington e até Martin Luther King quando este apontou baterias a norte e abordou temas como o racismo e a segregação racial.

Por enquanto, temos esta tremenda alegoria da América e não só. "Show Me a Hero" adquire ressonância contemporânea na Europa no Verão de 2015 com as convulsões na Grécia e o êxodo de emigração para velho continente mas também nos Estados Unidos que perante o primeiro Presidente negro na Casa Branca o país nunca esteve tão dividido em termos raciais como nas últimas décadas.

As séries de David Simon normalmente provocam o debate e a consciencialização social e política mas também a revolta nos espectadores e "Show Me a Hero" não é exceção.

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