A escritora Neige Sinno, que emocionou os leitores franceses com a sua história sobre os abusos sexuais que sofreu quando era criança, apresentou num festival mexicano a versão em castelhano do seu livro "Triste Tigre", que ela mesma traduziu.
“Escrevi-o aqui no México”, explicou à France-Presse (AFP) a autora, que no ano passado ganhou vários prémios literários no seu país, a França, e que mora no estado mexicano de Michoacán.
“Foi aqui que conheci este debate social sobre violência sexual”, continua ao apresentar seu trabalho no Hay Festival de Querétaro, que decorreu de 5 a 8 de setembro.
Este livro, publicado em 2023, venceu, além do Femina, o Prémio Goncourt des Lycéens, o Strega Europeo, o prémio do Le Monde, do Les Inrockuptibles e o Choix Goncourt de 14 países em todo o mundo, tendo sido ainda finalista dos prémios Goncourt e Médicis.
Sinno evoca no seu texto as violações que sofreu às mãos do padrasto, dos sete aos 14 anos, na casa da família onde morava com a mãe e os irmãos.
À sua história, que descreve como um “diálogo interior”, a autora acrescenta reflexões sobre os criminosos sexuais e o poder da literatura para explicar o inexplicável.
Neige Sinno tem 47 anos e vive no México com o marido e a filha. Formou-se em Literatura Americana e, além do trabalho como professora e tradutora, é autora de novelas, de um ensaio e de um romance, sendo agora publicada pela primeira vez em Portugal com “Triste Tigre”, através da Editorial Presença, com tradução de Catarina Ferreira de Almeida.
O livro está dividido em dois grandes capítulos, divididos por sua vez em subtemas, sendo o primeiro – “Retratos” - dedicado aos abusos atravessando uma linha cronológica que vai da infância à atualidade, e o segundo – “Fantasmas” – dedicado a reflexões sobre o sucedido, a partir do momento presente.
Na abertura do segundo capítulo, a autora tece “algumas considerações sobre o trauma”, trinta anos depois, e afirma que mesmo depois de ter compreendido que tudo acabara, “a violação, a infância, a família”, percebeu que nunca estará completamente livre, “porque nada termina de facto e, mesmo que nos tornemos outra pessoa, essa parte de noite continua também o seu caminho”..
Problema social
“Porque também eu, no fundo, acho mais interessante o que acontece na cabeça do carrasco (...) Estar num quarto sozinho com uma criança [...] colocar o pénis ereto na boca do homem dessa criança, fazer com que abra de forma grande a boca. Isso é fascinante."
Com esta observação irónica e provocativa começa o livro que conquistou mais de 300 mil leitores na França em 2023, ganhando o prémio Femina.
Ao longo da narrativa, a autora tenta compreender o perfil psicológico do seu violador, condenado pela justiça francesa.
“Por que falar novamente desta história já que houve um julgamento?”, perguntaram-lhe os familiares, lembrou Sinno ao apresentar o seu trabalho no encontro de escritores, artistas, jornalistas e músicos no Hay Festival.
“É um trauma que não passa”, explica a francesa. “As coisas não mudaram desde que fui violada quando era criança, nem na França, nem no México, nem na China.”
“Uma em cada três vítimas é uma criança, não é um problema feminista. É um problema social”, afirma.
A apresentação em castelhano deste livro coincidiu com a abertura do julgamento em França contra Dominique Pelicot, já descrito como o "Monstro de Avignon", por drogar a sua esposa para que dezenas de homens desconhecidos a pudessem violar.
“Um dos maiores criminosos sexuais dos últimos anos”, disse a filha do casal durante o julgamento Avignon, no sul de França.
Sinno está satisfeita com o facto de a queixosa, Gisèle Pelicot, estar a enfrentar julgamento público sem ocultar a sua identidade.
“O bom da cobertura mediática é que se centra na dignidade desta mulher. É fabuloso”, diz.
A escritora trabalhou nas versões nos dois idiomas quase ao mesmo tempo.
“Escrevi-o em francês, mas como não encontrei editor, escrevi em castelhano. Quando encontrei um editor na França, a tradução estava finalizada”, explica.
Ela apresentou partes do texto em castelhano numa oficina literária onde participou e o feedback dos colegas permitiu-lhe enriquecer a história nos dois idiomas.
"Uma narrativa, uma autópsia, um ensaio e uma confissão"
É difícil categorizar “Triste Tigre” quanto ao género, pois, sendo uma obra de não-ficção, divide-se entre o relato das violações de que Neige Sinno foi vítima quando era criança, e o ensaio, sobre a violência sexual e o abuso sexual de menores.
Como descreveu, na altura da atribuição do prémio Femina, o jornal Le Fígaro, “Triste Tigre” não é belo, terno, nem comovente, é “perfeitamente justo”, e é “uma narrativa, uma autópsia, um ensaio e uma confissão”, que “resiste à categorização e transborda dos compartimentos”.
A primeira página de “Triste Tigre” apresenta sem rodeios o retrato do homem que abusou da autora em criança – “Retrato do meu violador” -, quando tinha apenas sete anos, violações repetidas, sistemáticas e com uma “gradação crescente”, praticadas ao longo de muitos anos, ao abrigo do silêncio e de mecanismos de controlo e dominação.
A seguir a autora faz o retrato do padrasto, procurando vê-lo pelos olhos da mãe, descrevendo o homem por quem ela se encantou, mas termina admitindo que não o consegue fazer, pois apesar de já ter escrito romances e novelas, que a dotaram da capacidade de fazer retratos, reconhece que aqui “não é a mesma coisa”, porque o retratado “é ele” e a vítima é ela e, apesar da verdade objetiva que procura, “as recordações persistem”.
Por altura da aceitação do prémio, Neige Sinno explicou ter escolhido a não-ficção para tratar este tema, porque era uma forma muito aberta que lhe permitia usar as ferramentas que tinha forjado ao longo dos anos no seu trabalho literário e ganhar a confiança de que precisava para ir até ao fim.
Não era o tema da violência sexual contra crianças que a assustava – como explicou –, porque já o abordara muito no seu trabalho e porque é algo muito presente na sua vida. O que a assustou foi lidar com o assunto na primeira pessoa.
Neige Sinno, hoje com 46 anos, teria seis anos quando o padrasto, de 24, foi viver para sua casa e lhe começou a dizer que queria amá-la como se fosse a própria filha.
Neige recusava-se a tratá-lo por pai e resistia-lhe. Uma noite, este homem, que ela descreve como “alto e robusto, brutal até”, junta-se a ela na cama e ela não ousa resistir. A noite duraria oito anos.
Aos 19 anos, decidiu quebrar o silêncio, denunciou o agressor, passou pelo julgamento público e saiu de França, depois da condenação.
Inicialmente, nem queria escrever este livro, mas o passado alcançou-a e Neige Sinno teve a certeza de que era preciso fazê-lo, e o resultado é uma obra que a escritora Annie Ernaux, Prémio Nobel da Literatura em 2022, descreveu como a “mais poderosa e profunda” que alguma vez leu “sobre uma criança devastada por um adulto”.
Numa das partes de “Triste Tigre”, a autora reflete sobre o romance “Lolita”, de Nabokov, um texto que considera provocador, acima de tudo pelo ponto de vista através do qual a história é contada.
“Que o narrador seja o culpado, o pedófilo, e que o leitor seja obrigado, por intermédio da voz narrativa, a entrar na sua cabeça, a penetrar nos arcanos dos seus raciocínios, das suas justificações, das suas fantasias, eis o que torna esta leitura tão fascinante e perturbadora”, escreve.
É através deste narrador, que Neige entra na cabeça do seu violador, porque percebe que os argumentos, as manipulações, o tipo de pensamento é o mesmo, e é por isso que encontra em “Lolita” “tantos pontos em comum” com a sua “sórdida história pessoal”.
Neige Sinno explicou, numa entrevista, que só entrando na cabeça do seu carrasco o poderia destruir melhor.
Na Neige Sinno de hoje, a memória exata do abuso permanece e ela confessa, no livro, que apesar de o padrasto já não estar presente na sua vida e de ela se ter aberto ao mundo, continua com a sensação de que a qualquer momento vira a cabeça e vê a sua sombra.
Como afirma a autora, as consequências da violação não se esgotam no domínio restrito da sexualidade, o espaço físico que o abuso ocupa é o do resto da vida, e a sua dimensão negra torna-se um duplo que se sobrepõe a tudo.
Por isso, este livro não é a história de uma criança que foi abusada, é a procura incessante de Neige para encontrar a verdade sem adornos, por conseguir ouvir a sua voz real e fazer o leitor escutá-la, sem reparação de danos e sem retórica da vítima, descreve a editora.
Ao jornal Le Figaro, por ocasião da atribuição do Prémio Femina, a escritora explicou: “Não escrevi este romance como uma provocação, mas como um desafio: ousar pensar, ousar refletir, ousar dizer”.
“Mesmo que eu não soubesse com quem estava a falar, espero que o leitor que criei no meu texto e que existe hoje se atreva a pensar, a pôr ideias a funcionar, a fazer observações e levantar questões. Quando ouço alguém dizer-me 'fiz algumas perguntas a mim próprio', fico feliz”, acrescentou.
O mesmo jornal escreveu que “Neige Sinno escreve sobre o incesto sem poesia ou 'voyeurismo': Poderia ter descrito o violador no seu quarto, os gestos, a violência. Preferiu não o fazer - exceto uma vez, e a cena é indescritível”.
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