É difícil categorizar “Triste Tigre” quanto ao género, pois, sendo uma obra de não-ficção, divide-se entre o relato das violações de que Neige Sinno foi vítima quando era criança, e o ensaio, sobre a violência sexual e o abuso sexual de menores.
Como descreveu, na altura da atribuição do prémio Femina, o jornal Le Fígaro, “Triste Tigre” não é belo, terno, nem comovente, é “perfeitamente justo”, e é “uma narrativa, uma autópsia, um ensaio e uma confissão”, que “resiste à categorização e transborda dos compartimentos”.
Este livro, publicado em 2023 e que terá a primeira edição portuguesa em setembro deste ano, pela Editorial Presença, venceu, além do Femina, o Prémio Goncourt des Lycéens, o Strega Europeo, o prémio do Le Monde, do Les Inrockuptibles e o Choix Goncourt de 14 países em todo o mundo, tendo sido ainda finalista dos prémios Goncourt e Médicis.
A primeira página de “Triste Tigre” apresenta sem rodeios o retrato do homem que abusou da autora em criança – “Retrato do meu violador” -, quando tinha apenas sete anos, violações repetidas, sistemáticas e com uma “gradação crescente”, praticadas ao longo de muitos anos, ao abrigo do silêncio e de mecanismos de controlo e dominação.
A seguir a autora faz o retrato do padrasto, procurando vê-lo pelos olhos da mãe, descrevendo o homem por quem ela se encantou, mas termina admitindo que não o consegue fazer, pois apesar de já ter escrito romances e novelas, que a dotaram da capacidade de fazer retratos, reconhece que aqui “não é a mesma coisa”, porque o retratado “é ele” e a vítima é ela e, apesar da verdade objetiva que procura, “as recordações persistem”.
Por altura da aceitação do prémio, Neige Sinno explicou ter escolhido a não-ficção para tratar este tema, porque era uma forma muito aberta que lhe permitia usar as ferramentas que tinha forjado ao longo dos anos no seu trabalho literário e ganhar a confiança de que precisava para ir até ao fim.
Não era o tema da violência sexual contra crianças que a assustava – como explicou –, porque já o abordara muito no seu trabalho e porque é algo muito presente na sua vida. O que a assustou foi lidar com o assunto na primeira pessoa.
Neige Sinno, hoje com 46 anos, teria seis anos quando o padrasto, de 24, foi viver para sua casa e lhe começou a dizer que queria amá-la como se fosse a própria filha.
Neige recusava-se a tratá-lo por pai e resistia-lhe. Uma noite, este homem, que ela descreve como “alto e robusto, brutal até”, junta-se a ela na cama e ela não ousa resistir. A noite duraria oito anos.
Aos 19 anos, decidiu quebrar o silêncio, denunciou o agressor, passou pelo julgamento público e saiu de França, depois da condenação.
Inicialmente, nem queria escrever este livro, mas o passado alcançou-a e Neige Sinno teve a certeza de que era preciso fazê-lo, e o resultado é uma obra que a escritora Annie Ernaux, Prémio Nobel da Literatura em 2022, descreveu como a “mais poderosa e profunda” que alguma vez leu “sobre uma criança devastada por um adulto”.
Numa das partes de “Triste Tigre”, a autora reflete sobre o romance “Lolita”, de Nabokov, um texto que considera provocador, acima de tudo pelo ponto de vista através do qual a história é contada.
“Que o narrador seja o culpado, o pedófilo, e que o leitor seja obrigado, por intermédio da voz narrativa, a entrar na sua cabeça, a penetrar nos arcanos dos seus raciocínios, das suas justificações, das suas fantasias, eis o que torna esta leitura tão fascinante e perturbadora”, escreve.
É através deste narrador, que Neige entra na cabeça do seu violador, porque percebe que os argumentos, as manipulações, o tipo de pensamento é o mesmo, e é por isso que encontra em “Lolita” “tantos pontos em comum” com a sua “sórdida história pessoal”.
Neige Sinno explicou, numa entrevista, que só entrando na cabeça do seu carrasco o poderia destruir melhor.
O livro está dividido em dois grandes capítulos, divididos por sua vez em subtemas, sendo o primeiro – “Retratos” - dedicado aos abusos atravessando uma linha cronológica que vai da infância à atualidade, e o segundo – “Fantasmas” – dedicado a reflexões sobre o sucedido, a partir do momento presente.
Na abertura do segundo capítulo, a autora tece “algumas considerações sobre o trauma”, trinta anos depois, e afirma que mesmo depois de ter compreendido que tudo acabara, “a violação, a infância, a família”, percebeu que nunca estará completamente livre, “porque nada termina de facto e, mesmo que nos tornemos outra pessoa, essa parte de noite continua também o seu caminho”.
Na Neige Sinno de hoje, a memória exata do abuso permanece e ela confessa, no livro, que apesar de o padrasto já não estar presente na sua vida e de ela se ter aberto ao mundo, continua com a sensação de que a qualquer momento vira a cabeça e vê a sua sombra.
Como afirma a autora, as consequências da violação não se esgotam no domínio restrito da sexualidade, o espaço físico que o abuso ocupa é o do resto da vida, e a sua dimensão negra torna-se um duplo que se sobrepõe a tudo.
Por isso, este livro não é a história de uma criança que foi abusada, é a procura incessante de Neige para encontrar a verdade sem adornos, por conseguir ouvir a sua voz real e fazer o leitor escutá-la, sem reparação de danos e sem retórica da vítima, descreve a editora.
Ao jornal Le Figaro, por ocasião da atribuição do Prémio Femina, a escritora explicou: “Não escrevi este romance como uma provocação, mas como um desafio: ousar pensar, ousar refletir, ousar dizer”.
“Mesmo que eu não soubesse com quem estava a falar, espero que o leitor que criei no meu texto e que existe hoje se atreva a pensar, a pôr ideias a funcionar, a fazer observações e levantar questões. Quando ouço alguém dizer-me 'fiz algumas perguntas a mim próprio', fico feliz”, acrescentou.
O mesmo jornal escreveu que “Neige Sinno escreve sobre o incesto sem poesia ou 'voyeurismo': Poderia ter descrito o violador no seu quarto, os gestos, a violência. Preferiu não o fazer - exceto uma vez, e a cena é indescritível”.
Neige Sinno tem 46 anos e vive no México com o marido e a filha. Formou-se em Literatura Americana e, além do trabalho como professora e tradutora, é autora de novelas, de um ensaio e de um romance, sendo agora publicada pela primeira vez em Portugal com “Triste Tigre”.
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