Este ano quebrou-se o enguiço da chuva, com todos os dias a motivarem idas prolongadas ao rio. O Paredes de Coura é o cartaz que apresenta, mas também é a beleza envolvente e as mil artimanhas que os festivaleiros arranjam para gracejar, seja através do uso de fatos animalescos, de máscaras ou dos mais improváveis cartazes. É esse bom ambiente que nos faz ouvir falar já em 2015, sem ainda termos testemunhado as qualidades de James Blake, Beirut, Goat ou Kurt Vile, que atuariam poucas horas depois.
Esta atmosfera atinge, inclusive, as ruas da vila, que se preenchem para pequenos-almoços ou refeições completas mais aprimoradas do que as possíveis no campismo, ou para celebrações paralelas, como a que protagonizaram os Gin Party Soundsystem, um dia antes.
O Palco Vodafone FM, como foi apanágio de todos os outros dias, dá o pontapé de saída, no que à música diz respeito. Sequin, projeto de Ana Miró, oferece-nos uma eletrónica familiar, com umas linhas de baixo que teimam em prender-se ao ouvido. A própria, ao centro do trio, não se cansa de sorrir e revelar toda a sua boa disposição, enviando carícias a quem a acompanha nas letras. “Penelope” é o seu único álbum, editado este ano, de onde retirou ‘Heart To Feed’, ‘Naive’ e, a finalizar, ‘Beijing’, mas a audiência teve, ontem, a oportunidade de ouvir um dos temas de um próximo trabalho. A atuação foi curta, mas Ana garante rever-nos daqui a um ano.
Os igualmente portugueses Sensible Soccers foram os responsáveis pela abertura do palco Vodafone, esperando-os um anfiteatro bem composto. A sua musicalidade exigia, contudo, outra hora. O sol, que alcançava e brilhava nos olhos, não combinava com “8”, único longa-duração deste projeto. Dançável, como aquelas bandas sonoras dos replays do futebol, a sensibilidade instrumental dos vila-condenses permitiu ainda a participação de um bailarino sem preceito, que vagueou palco fora, em tronco nu, contagiando as primeiras filas. Um autêntico festim cujo horário não permitiu, infelizmente, mais gás.
Os norte-americanos The Dodos, em ação no palco Vodafone FM, apresentaram "Carrier" a meio gás. Lembrando aqui e ali os temas de “Helplessness Blues”, dos compatriotas Fleet Foxes, a dupla constituída por Meric Long e Logan Kroeber teve dificuldade em agarrar os presentes, com os seus argumentos indie folk a tornaram-se permeáveis. Foi-se, portanto, migrando, aos poucos, para o palco principal, onde Kurt Vile se preparava para atuar.
Ainda brilhava o sol. Acompanhado pelos The Violators, Kurt Vile fez da revolta folk uma lição de indie lo-fi com traços psicadélicos, enquanto segurava uma guitarra semelhante àquela que se via nas mãos do outro Kurt, o célebre líder dos Nirvana. Vile, que co-fundou os The War On Drugs com Adam Granduciel, investe nos seus dotes de guitarrista principal desde 2008. Foi desde então que nasceram discos como “Childish Prodigy”, “Smoke Ring For My Halo” e o mais recente “Wakin On Pretty Daze”, no qual incidiu, principalmente, o seu alinhamento.
Em alguns momentos até chamou Bob Seger à memória, sabendo, no entanto, fazer das atenções gerais somentes suas - tanto as de quem permanecia de pé lá à frente, como as de quem se sentava pelo recinto fora, de olhos postos no palco. A noite tinha, entretanto, assaltado a Praia Fluvial do Taboão e não se poderia ter exigido melhor acompanhamento sonoro para o crepúsculo.
Caídos em hiato, os The Walkmen permitiram ao seu vocalista, Hamilton Leithauser, enveredar por uma carreira a solo. Sem querer fazer por menos, Leithauser juntou-se a músicos dos Vampire Weekend, Fleet Foxes, Dirty Projectors e The Shins para trabalhar no seu único lançamento até à data, de seu nome “Black Hours”. Em palco, foram então deixados de parte os temas da sua banda e apresentados osnovos caminhos que a sua voz explora a título singular. Boas impressões deixadas à audiência, que dançou, sentiu e aplaudiu com convicção ao longo da prestação.
Os The Growlers sabem o que querem: festa. Os californianos estão dispostos a proporcionar o melhor dia das vidas dos fãs, fazendo-os subir ao palco, participar no concerto e pular pelas grades. O registo é familiar: surf rock, psicadelismos e alguns rasgos de country. Assim se faz a receita dos foliões, responsáveis por aquecer as viagens que se seguiam. Viveram-se, por momentos, os dias de praia calorosos do final dos 60’s – o rugido, seguro de si próprio, foi chamativo e a audiência rendeu-se à banda certa no lugar certo.
Eis que, no palco Vodafone FM, começava a viagem da noite. Os suecos Goat são tudo ao mesmo tempo. São afrobeat, são uma parede de som, são doom rock, são tango, são tanto quanto a imaginação lhes permite. Os sete mascarilhas suscitam um ritual de danças de veias étnicas, inteiramente ligadas à sua origem – são oriundos de Korpilombolo, localidade que ainda hoje carrega a lenda dos seus habitantes se dedicarem à veneração e prática de voodoo. Este estranho coletivo soube transformar todas as influências do mundo em música para ser celebrada, com as vestimentas mais curiosas. Com ‘Talk To God’, logo a abrir, passando por ‘Gathering Of Ancient Tribes’ e ‘Run To Your Mama’, foram facilmente angariados novos devotos discípulos do grande bode, numa grande viagem pelas músicas do mundo.
Essa viagem fez paragem nos países Balcãs, nomeadamente em Beirut, capital libanesa, graças à orquestra de Zach Condon. O perfume do leste europeu foi pressentido logo no começo, com as músicas extraídas de “The Rip Tide”, que já data de 2011 mas que continua a ser o mais recente do projeto, o que estabilizou um alinhamento que roçou uma espécie de compilação das faixas mais apreciadas pelos fãs.
O músico de Santa Fé, Novo México, sorriu e agradeceu a cada tema, com a restante banda a seguir-lhe os gestos. Uma honesta palavra de apreço para com os portugueses, que continuam a receber os Beirut da melhor maneira. Dança-se, canta-se, viaja-se de olhos fechados e ali se está, sem se saber como e porquê. Há postais de Itália, há visitas à cidade natal de Zach e há um cruzeiro pelo Mediterrâneo, com um cruzamento transatlântico a pedido do público – gritava-se "Leãozinho" e a vontade foi cumprida, com uma curta rendição a Caetano Veloso, em bom português. Uma descoberta de destinos, de pés bem assentes no chão, mas de mente solta, com ‘Gulag Orkestar’ e ‘The Penalty’ a afirmarem-se como as chaves de ouro.
A última estação foi Londres. O talento de James Blake já lhe valeu um Mercury Prize em 2013, galardão que distingue o melhor álbum inglês do ano, e vê-lo e ouvi-lo num esgotado dia de festival, naquela que foi a mais preenchida edição até à data, causou alguma estranheza ao início. Tornou-se íngreme controlar os impulsos da audiência, que se exigia silenciosa para a música do britânico.
Depois de combatidos os percalços e de nos presentear com a sua versão de ‘Limit To Your Love’, de Feist, as duas partes de ‘Lindisfarne’ e uma visita a Joni Mitchell, com ‘A Case Of You’, ao piano, James Blake afirmou-se mestre da música digital com ‘Overgrown’, ‘Digital Lion’, ‘Voyeur’ e ‘Life Round Here’. Fez-se uma pequena pausa para se ouvir a entoar ‘Hope She’ll Be Happier’, de Bill Withers, e jogou-se, então, às esperadas ‘Retrogade’ e ‘The Wilhelm Scream’. Os loops construídos na primeira incomodaram Blake, que afirmou esperar não ouvir o público nos novos, que ia construir para a sua despedida. Depois de alguma persistência, calma e paciência, James conseguiu desenvolver ‘Measurements’, arrebatando, no final das contas, o título de melhor atuação do Vodafone Paredes de Coura 2014.
A sua presença no festival não se ficou por aqui - seguiu-se no palco Vodafone FM um DJ set do coletivo 1-800 Dinosaur, do qual James Blake faz parte, juntamente com Dan Foat, Airhead e Mr. Assister. Um fiel sentimento de after-party, perfeito para encerrar o evento, o qual os festivaleiros não deixaram de testemunhar. Gastavam-se os derradeiros cartuchos com dubstep e house de tempos médios, deixando o paladar a noite londrina em Paredes de Coura. Será possível viajar mais do que isto sem sair do mesmo espaço?
"Para o ano há mais", diz-se, como sempre. O Paredes de Coura foi, é e será sempre um festival de ávidos seguidores. Quem compareceu pela primeira vez, irá querer repetir e o Alto Minho estará, como sempre ao dispor.
Texto: Nuno Bernardo
Fotografias: Hugo Sousa
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