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Fazendo jus ao conceito do festival, pusemo-nos a mexer e descemos a avenida rumo à Sociedade de Geografia, para ouvir alguns temas de Elisa Rodrigues, (bem) acompanhada ao piano por Júlio Resende. Apesar de um nervosismo bem patente, Elisa e Resende ofereceram um cruzamento entre a música erudita, o free jazz e a arte de bem cantar, numa entoação que está entre o sussurro e a explosão. “Heart Mouth Dialogues”, o seu primeiro disco, está por aí à espera de ser escutado.
Entramos no Tivoli e confirma-se o estado de parafernália que só fica bem a quem quer apresentar “Grande Medo do Pequeno Mundo”, um sucessor que se espera digno dessa rodela de nome “Nem Lhe Tocava”, lançada faz agora dois anos. Acompanhado por vários membros da família Flor Caveira, como Filipe Sousa no baixo, Jónatas Pires na guitarra (ambos dos Pontos Negros) e Guel nas teclas (dos Lacraus), Samuel Úria veste-se como uma versão meio alienada de um rocker dos anos cinquenta: fato de fazenda num bege desmaiado e um penteado que, com um pouco mais de brilhantina, daria um ar de travoltiano em versão campestre.
As letras mostram que Úria continua um escriba de primeira apanha: lembra-se que os homens não choram, que as mulheres - pelo contrário - usam as lágrimas como uma arma química, pede-se que não se sacudam grãos de areia que estão destinados a encontrar o mar.
Depois de “Forasteiro”, o primeiro single que já se ouve há algum tempo, entra em palco um coro imenso e, então, é como se o Tivoli se transformasse na Igreja do Santo Rock. “Água de Colónia da Babilónia” é tema para despertar, mesmo no espírito mais ateu, uma considerável dose de crença numa entidade superior que nos vigia, guarda e protege.
Em temas mais a rasgar, a voz de Úria dificilmente se faz ouvir, perdida entre a muralha sonora que eleva os temas a hinos religiosos, como em “Pequeno Mundo”, canção com ar de death metal popular que parece servir de oráculo à chegada ao anticristo.
“Eu Seguro”, o segundo single que terá direito a videoclip não tarda muito, conta com a presença de Márcia em palco, que compôs o tema a meias com Úria. E é precisamente no lado mais limpo que a voz de Úria melhor se revela, bem como a sua forma de cantar - que é como um contar de histórias antes da hora de ir para a cama. Não fomos dormir, mas nem por isso deixámos de ficar a sonhar acordados com a chegada do novo disco deste profeta da folk.
Na pequena sala do S. Jorge, Jacinto Lucas Pires e Tomás Cunha Ferreira tratavam de musicar a Literatura perante uma plateia despida quase ao ponto do strip-tease. “Bandeira”, que teve direito a coro, é dedicada a Angela Merkel, que se tornou merecidamente na bruxa má dos livros e jornais do dia-a-dia. “Pop é o contrário de pop”, o primeiro disco da banda editado pela mbari, continua com "stock disponível", de acordo com palavras de Lucas Pires. É comprá-lo para que a dupla possa gravar uma nova rodela.
Como se de uma ópera se tratasse, foi servido aos que entravam na sala maior do S. Jorge o programa para o que se iria seguir. Manuel Fúria subia ao palco com os Náufragos, e o nome parece fazer todo o sentido. Os sete músicos que subiram ao palco bem que poderiam ser a tripulação de um barco pirata, no mar das Caraíbas ou no rio Tejo, liderados pelo Capitão Manuel Fúria em busca de saquear as raízes de Portugal.
“Jogo do Sapo” é rock medieval ou anda lá perto; “Nª Srª da Graça dos Degolados” é uma declaração de um amor que se quer eterno mas se pressente trágico, feita nas festas de S. Pedro. Agora, transmudados de piratas para saltimbancos, estes músicos de uma corte qualquer oferecem uma frenética versão do clássico “La Bamba”; “Lugar da Cuca” é apresentado por Fúria como uma “canção cheia de coisas boas para dançar e para amar”. Há emigrantes que chegam em carros de alta cilindrara a ouvir música de dança, rapazes a lutar e a chorar por raparigas.
Será isto música de baile com um kick? Uma opereta rock para bailes de verão? O que quer que seja, Manuel Fúria e os Náufragos estão prontos para navegar rios e mares acima. Protejam as vossas filhas e abram os vossos corações. A estreia da banda em formato longa duração, prevista para o final do primeiro mês do novo ano, promete fazer correr muita água.
Os Alt-j, heróis de Leeds e vencedores do sempre apetecido Mercury Prize, foram recebidos no Tivoli como seria D. Sebastião se se atrevesse a meter de novo o pé na Lusitânia. Há um público heterogéno mas sobretudo caras novas, habituadas a seguir de perto modas e fenómenos quando estes começam a circular em redes sociais, mesmo que possam estar destinados a uma duração tão curta quanto um amor de verão na adolescência.
“Interlude” abre os corações à celebração, e não deixamos de pensar que o coro que serviu Úria bem que podia ter dado um embalo ainda maior aos rapazes; “Breezblocks” é um abraço apertado entre o hip-hop e a pop, com um elevado índice de acidez que, em vez de atacar o estômago, impele o corpo à dança; “Bloodflood” é revisto de forma exemplar, mostrando o ADN musical dos Alt-J: uma percussão exemplar, com tanto de militar como de tribal, uma voz nazalada a fazer lembrar um anjo constipado, uma guitarra que, a cada acorde, levanta uma onda sonora capaz de despertar o desejo surfista em cada um, o embrulho de luxo dado pela envolvência dos teclados. Tudo somado, temos uma economia sonora onde tudo é apresentado a seu devido tempo. Não serão tão poupados quando os The XX, mas a ideia de minimalismo é comum a ambos.
A presença em palco é igualmente contida, mas, quem já viu algumas entrevistas com os rapazes, sabe que a timidez é algo que lhes assenta como uma luva. Era notório o ar de satisfação e mesmo de alguma incredulidade da banda perante tamanha devoção e, apesar de alguns momentos em que a voz de Joe Newman ameaçava quebrar, tudo correu sobre rodas para os Alt-J - que só não saíram do Tivoli em ombros porque não desceram cá abaixo.
A pergunta fica no ar: serão os Alt-J capazes de viver com a fama, manter a incondicionalidade dos fãs e resistir aos ataques que surgem de toda a parte, reflexo de uma ideia de inveja pós-moderna ou de uma crítica com pés e cabeça (decidam a opção que vos agradar mais)? Os The XX fizeram-no, os Mumford & Sons nem por isso, resta esperar para ver se este quarteto será, ou não, um fenómeno de curta-duração. Sinceramente, acreditamos que não.
Apesar de não haver notícias de obras na estação do rossio, Cody Chesnutt não dispensou o capacete na cabeça. Pensem num Aloe Blacc com um pouco menos de sensualidade, mais barriga e uma voz com uma vontade de pegar fogo ao mundo, e terão uma ideia mais ou menos aproximada. Apontado como uma das mais sólidas promessas da canção negra americana, e mesmo que se notasse que a maior parte dos presentes não conheceriam mais do que um tema, Cody e companhia serviram-nos uma salada de Soul, R&B e rock ´n´ roll, num concerto que serviu de cartão de visita a “Landing On A Hundred”, disco acabadinho de sair.
Terminámos o primeiro dia no S. Jorge ao som de Little Boots – que no Cartão de Cidadão assina como Victoria Hesketh -, vestida a rigor para uma noite de festa com ar de eurovisão. Acompanhada por um baterista e um teclista, Little Boots serviu-nos um electropop que podia ser a banda sonora para uma viagem ao volante de um carrinho de choque. Os Saint Etienne são uma clara inspiração, mas esta deveria ser encontrada nos primórdios da carreira da banda - já que, os anos recentes, têm sido uma desilusão para fãs de longa data. Apenas para incondicionais, independentemente do tamanho do calçado.
Texto: Pedro Miguel Silva
Fotografias: Guilherme Sousa
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