O concerto de ontem à noite prometia uma viagem a este mundo secreto de José Cid, por isso mesmo, e antes de ligar os motores da nave espacial, o músico interpretou "Vida (Sons do Quotidiano)" (dedicado ao produtor e A&R Mário Martins) e "Cantamos Pessoas Vivas" (que aproveita um belíssimo poema de José Jorge Letria), dois importantes documentos do seu património sinfónico, não só por terem sido os primeiros do estilo a serem gravados, mas também por pertencerem aos seus álbuns prediletos: numa entrevista que deu ao Palco Principal, em fevereiro de 2013, o músico disse preferir "Onde, Quando, Como, Porquê, Cantamos Pessoas Vivas" e "Vida (Sons do Quotidiano)" a "10000 Anos...", por considerar estas obras as mais "ousadas, surpreendentes e, ao mesmo tempo, as menos projetadas" desta sua fase. Daí este ponto de partida.

Pouco depois, e ainda antes de se atirar às primeiras notas do principal objeto da noite, o artista aproveitou para dar a conhecer quatro temas do seu próximo episódio sinfónico, o álbum "Vozes do Além" (com lançamento previsto para 2015), uma obra que aproveita poemas de Natália Correia e Sophia de Mello Breyner, e que gira em torno da história de um guitarrista que morre num acidente a caminho de casa e da sua alma que permanece no mundo dos vivos. Das quatro canções interpretadas, cujo nome não conseguimos precisar com toda a certeza, destaque para a segunda e a terceira, carregadas de rock, como mandam as leis, e pautadas por notáveis solos de guitarra e teclado.

Depois desta primeira parte que serviu de aperitivo para os cerca de quarenta minutos que se seguiram (por esta altura já a Aula Magna, bastante heterogénea a nível de idades e géneros, aplaudia de pé rendida ao desempenho em palco), José Cid lançou o repto para o momento que se seguiria: "estão prontos para a viagem?". A resposta não podia ter sido mais imediata e unânime: ninguém estava era ali para outra coisa. Capacetes colocados, cintos apertados, tudo a postos para descolar na nave espacial de José Cid, que ativou os seus propulsores ao som de "Último Dia Na Terra", o primeiro capítulo da narrativa de "10000 Anos...".

Para os mais distraídos, o disco que o músico se propôs interpretar na noite de ontem conta a história de um homem e uma mulher que, 10000 anos depois da autodestruição da humanidade, regressam à terra para repovoar e criar uma nova civilização. Nesta recriação ao vivo não foi possível encontrar os elementos que em 1978 acompanharam Cid na gravação do álbum (Zé Nabo, Mike Sergeant e Ramon Galarza), mas os músicos escolhidos para a missão - Augusto Vintém (piano elétrico), Francisco Martins (viola, guitarra elétrica), Samuel (bateria), Pepe (baixo) e Carmo Godinho e José Perdigão (coros) - estiveram à altura do desafio e contribuíram para o sucesso do concerto.

Seguindo a ordem cronológica do álbum, "Caos" deu seguimento à viagem, com especial destaque para as passagens efetuadas por Francisco Martins entre a viola e a guitarra elétrica, entre a calmaria e o caos, sem falhas, com uma coordenação de se louvar (diga-se de passagem que foi o artista que mais brilhou em palco na noite de ontem). Logo a seguir foi a vez das ambiências de "Fuga Para o Espaço" nos indicarem o caminho para "Mellotron, o Planeta Fantástico", rasgando a via láctea, deixando Marte e Vénus para trás e aproveitando Plutão como ponto de paragem (não há um quê de "Space Oditty" e de "The Great Gig In The Sky" nas entrelinhas deste tema?).

Depois da passagem por "Mellotron..." - especial atenção à melodia vinda das teclas de José Cid -, tempo para o momento alto desta caminhada celeste, protagonizado ao som da faixa título, que viu o seu refrão ("podes ver 10000 anos atrás, no écran do radar, entre Vénus e Marte, um planeta vazio, à espera que o descubram, onde recomeçar outra civilização") ser entoado por centenas de pessoas, várias vezes, a uma só voz, causando a devida emoção no palco e na plateia (momento que viria a repetir-se no encore, desta vez com a Aula Magna toda de pé a aplaudir). Um estado de euforia que acabaria por servir de combustível à reta final desta história, com "A Partir do Zero" e "Memos" a colocarem um ponto final na odisseia espacial de José Cid com um regresso ao ponto de partida, ao bom estilo da mais clássica obra de ficção científica do género, realizada em 1968 por Stanley Kubrick.