A abertura a outras paisagens musicais, que propõe ao fado de Coimbra, "é uma demanda" que João Farinha já tem na carreira a solo, disse em entrevista à agência Lusa.
"Desde o álbum ‘Solto’ [2020] que procuro novas sonoridades para o fado e, nessa demanda, fui buscar um grande músico, para produzir este disco, o Tiago Machado, que já trabalhou com Mariza e Marco Rodrigues. E percebi que ele tinha argumentos para me ajudar, e, obviamente, sabia que corria um risco, de o disco ter uma sonoridade tão diferente do campo do Fado de Coimbra. E isso acontece”.
“Alguns temas extravasam de tal modo que não os posso classificar como fados de Coimbra, e há clássicos de Coimbra que levam uma nova roupagem", prossegue o músico. "Mas quiçá, esses fados que não considero fados de Coimbra, não possam vir a ser clássicos, [mesmo] se eu entrar numa linguagem mais clássica”, acrescentou.
O álbum conta com as participações do artista de Hip Hop Mc Ruze, de Tiago Nogueira, dos Quatro e Meia, da cantora Mafalda Umbelino e, através da recuperação de uma gravação da RTP, de João António Farinha, pai do músico que o apontou como a sua principal referência.
O alinhamento inclui temas como “Balada da Despedida” (Francisco Bandeira de Mateus/Fernando Machado Soares), com a participação de MC Ruze, também na escrita, “Verdes Anos” (Pedro Tamen/Carlos Paredes), “Fado dos Passarinhos” (Popular dos Açores/António Menano), clássicos do repertório coimbrão e novas composições como “Águas Passadas” (José Rebola), “Tão Longe” (Tiago Nogueira) e “A Conta que Deus Fez” (Tiago Machado).
Este é o quarto disco da carreira artística deste ex-gestor, que gravou em 2018 com o coletivo Fado ao Centro, e a solo em 2020, o álbum “Solto”, ao qual se seguiu “Ao Vivo” (2022).
O músico afirmou que prefere a denominação “Fado de Coimbra”, a “Canção de Coimbra” e justificou: “Prefiro ‘Fado de Coimbra’, um termo que acaba por abarcar as diferentes áreas dentro do fado de Coimbra; a canção é um pouco mais limitador”.
“Fado de Coimbra é o termo que as pessoas reconhecem, e por isso gosto mais do termo fado de Coimbra. Percebo a [opção por] canção e porque se quer chamar canção - porque a partir dos anos 1960, o Zeca Afonso, o Luiz Goes, começaram a cantar as baladas e canções que nada tinham a ver com os fados clássicos”, argumentou, referindo que “é mais fácil comunicar fado de Coimbra do que canção de Coimbra”.
O músico reconhece que, atualmente, no panorama musical, o fado de Coimbra está subvalorizado.
“Neste momento o fado de Coimbra está subalternizado, completamente, a meu ver, e infelizmente, porque tem havido pouca dedicação”, disse João Farinha.
O género “tem perdido ao longo dos anos, alguns cultores, alguns músicos, apesar dos esforços de algumas entidades e projetos privados como o Fado ao Centro”.
João Farinha, porém, deposita esperança na reversão desta conjuntura com a classificação da Universidade e da Alta de Coimbra, pela Organização das Nações Unidas para a Educação Ciência e Cultura (UNESCO), como Património Imaterial da Humanidade, e que abrange a prática do fado de Coimbra.
Neste âmbito, o músico referiu a diminuição de grupos de fado de Coimbra na Associação Académica. Espera todavia que a profissionalização a que se assiste no fado de Coimbra o venha a trazer de novo para a ribalta, “a exemplo do que se passou com o fado em Lisboa”.
Uma das razões que aponta para a “subalternização” do fado de Coimbra, surgiu após a Revolução do 25 de Abril, com a apresentação de “grupos de fado e não artistas como Zeca Afonso ou Luiz Goes”. Na opinião de João Farinha os grupos tornam-se efémeros e não constroem uma carreira efetiva.
“Muitos que passam pelo fado de Coimbra fazem-no quando são estudantes e isto é muito prejudicial para este género musical que se se quer afirmar como tal, e tem de ter músicos profissionais”, sublinhou.
Para o criador de “Será” (João Farinha), a profissionalização não colide com uma das características do fado de Coimbra, designadamente a sua ligação ao meio académico.
“Pode manter a ligação ao meio académico, mas pode extravasar os horizontes. E, por que não, o meio académico dar um auxílio a esta profissionalização?”, interrogou, sugerindo a criação de disciplinas ligadas ao fado e à canção de Coimbra e a todo este património imaterial.
Tendo deixado a carreira de gestão numa empresa de telecomunicações, João Farinha pretende seguir a carreira artística como profissional, sendo possível ouvi-lo diariamente no espaço Fado ao Centro, no Quebra Costas, em Coimbra.
Sobre o álbum, referindo-se aos músicos convidados, Farinha lembrou que Tiago Nogueira, com o qual partilha a interpretação de “ Sorri e Amei” (T. Nogueira), “vem de discos anteriores", nomeadamente do álbum “Solto”. Durante as apresentações deste disco, o músico dos Quatro e Meia compôs um novo tema que Farinha gravou no disco “Ao Vivo”, e pediu a Nogueira para lhe construir um novo tema e convidou-o a gravar consigo.
Outro participante é o seu pai, João António Farinha (1945-2012) que, como disse à Lusa, começou a cantar aos 12, 13 anos, “mas enquanto esteve ativo no mundo dos fados acabou por não gravar”. Fez no entanto parte do grupo Portugal dos Pequeninos, dirigido por António Portugal, que contava com nomes como Rui Pato, António Bernardino e Francisco Filipe Martins, e acabou por encontrar uma gravação sua nos arquivos da RTP.
O seu pai, garantiu, é a sua “grande referência”. E neste álbum reproduz uma interpretação dele de “Fado dos Passarinhos”, vinda de 1981, de um programa de Sansão Coelho, que no início da década de 1980 apresentou "Cantos e Contos de Coimbra" na RTP.
O álbum abre com um dos temas mais conhecidos do fado de Coimbra, “Balada da Despedida”, vulgo “Coimbra tem mais encanto”, que conta com a colaboração do artista de Hip Hop MC Ruze, que acrescentou palavras suas.
Mc Ruze “estava perfeitamente habilitado a escrever, pois conhece a realidade da cidade e as suas vivências, e escreveu logo”.
Na sua opinião, “é um dos temas mais bem conseguidos, até pela sua ousadia”.
Mafalda Umbelino, com uma carreira mais ligada à música lírica, professora no Fado ao Centro, é a única voz feminina no disco.
João Farinha há muitos anos que desenvolve a sua faceta como autor e compositor, pela “vontade de criar” temas seus.
Além de “Será”, Farinha assina, com José Rebola, a letra de “Viver Assim”, para a qual compôs a música. A parceria com Rebola assina também “Se Soubesse”, com Farinha na composição da música, que Mafalda Umbelino canta.
João Farinha afirmou que quis incorporar neste álbum temas de sua autoria. “O que é dar um pouco mais de mim, enquanto artista, uma dádiva para o futuro. É a minha marca pessoal, ao fim ao cabo, é a minha forma de comunicar através da música e, obviamente, isto tinha de estar refletido neste disco”, disse, sublinhando a colaboração de José Rebola nas letras.
A inclusão de “Verdes Anos” no alinhamento é uma homenagem de João Farinha ao “enorme Carlos Paredes” a quem deve o seu interesse pelo fado de Coimbra, que despertou ao receber de seu pai o CD “O Melhor de Carlos Paredes”.
O álbum “A Conta que Deus Fez” vai ser apresentado, com todos os convidados, na próxima sexta-feira, às 21:30, no Convento S. Francisco, em Coimbra. No dia 06 de outubro, às 17:00, estará no palco da Casa da Música, no Porto.
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