Pelo segundo ano consecutivo, a família Azáfama pisou o palco do Teatro do Bairro para um espetáculo que, "seguindo os contornos da primeira edição, mas sem repetir a mesma fórmula", como explicou o mentor, Pedro Valente, numa conversa com o Palco Principal algumas horas antes do início dos concertos, juntou os vários artistas do catálogo em palco, numa noite de celebração. À imagem do ano passado, os artistas colaboraram uns com os outros, entraram e saíram de cena de música para música, fizeram coros, tocaram guitarra, baixo, teclas - uma verdadeira Azáfama. Por isso, pedimos desde já desculpa ao leitor - e, claro, aos músicos em questão - por qualquer informação que não esteja de acordo com a realidade, mas é difícil, no meio de tanta confusão, ser preciso com os pormenores.

Vitorino Voador, projeto a solo de João Gil, e Cachupa Psicadélica, uma das mais recentes apostas da Azáfama, que cruza, como o nome indica, a essência da música cabo-verdiana com as paisagens do psicadelismo, envolvendo tudo numa mistura estimulante, foram os primeiros projetos a pisar o palco do Teatro do Bairro e, como tal, foram assombrados pela falta de respeito daqueles que não tiveram tempo de colocar a conversa em dia antes de entrarem para o espaço. À falta de locais apropriados para tal (bares, cafés, esplanadas...), por que não ir até ao Teatro do Bairro para comentar, de costas viradas para o palco, a publicação de fulano no Facebook ou os hashtags (palavra bonita...) de beltrano no Instagram? Isto é o cúmulo do desrespeito, não só pela audiência, mas também pelo próprio artista, pois durante a atuação de Vitorino Voador, que interpretou temas como "From Her Shooting Mouth" (original dos You Can't Win Charlie Brown, que contou com a presença do coletivo) e "Venha Ele", poucos foram os momentos em que a comunicação entre artista e plateia se processou sem interferências de terceiros.

Só alguns minutos depois, com o auxílio da energia rock de Capitão Capitão (projeto de JP Mendes), é que, finalmente, o público mais distraído focou a sua atenção na performance (afinal de contas, é difícil manter uma conversa com uma data de instrumentos em palco a debitar decibéis). Com Bernardo Oliveira na bateria, Salvador Caetano (Trêsporcento) no baixo e João Gil nas teclas, JP Mendes atirou-se a "Memórias Curtas" com o vigor necessário. De seguida, o artista chamou ao palco os restantes elementos dos Trêsporcento (à exceção do vocalista Tiago Esteves, que se encontra na Austrália) para tocarem em conjunto uma nova versão de "Grande Mentiroso", tema de Capitão Capitão. Para finalizar a atuação, foi a vez de JP Mendes, na companhia de Bernardo Oliveira (guitarra), interpretar "O Dia Em Que Esses Olhos Brilharam", canção do repertório dos Trêsporçento, pertencente ao álbum "Hora Extraordinária" (2011).

Logo de seguida, foi a vez dos Trêsporcento - ou "Doisemeioporcento", como se autointitularam, devido à ausência de um dos elementos - assumirem as lides do evento, acompanhados por três artistas convidados. O primeiro de todos, o fadista Rodrigo de Andrade, deu voz a "Cidade", dedicada a Sidney, numa mistura que nem sempre casou a dinâmica da voz com a banda. O segundo, JP Mendes, cantou e tocou teclas em "Veludo", colocando, pela primeira vez na noite, o público do Teatro do Bairro a dançar. O terceiro, David Jacinto, vocalista dos TV Rural, não só deu voz como deu também alma a "Cascatas", injetando nela a sua personalidade peculiar. Por fim, foi a vez dos próprios elementos da banda colmatarem a ausência de Tiago Esteves e darem o seu contributo em "Quero Que Sejas Minha", porém, longe de atingirem o resultado desejado (volta Tiago, estás perdoado).

A Azáfama nasceu em 2010, pela mão de Pedro Valente, resultado de um sonho de criança. "Tinha essa ideia em mente desde os meus 12 anos", confessou o empresário ao Palco Principal, "na altura até já tinha um nome em mente e tudo. Entretanto, acabei por arrumar essa ideia na gaveta durante alguns anos, até porque segui o meu percurso normal académico. Fui para a faculdade estudar gestão, comecei a trabalhar em banca, mas sempre com vontade de criar um selo editorial. Quando se instalou a crise, a minha carga de trabalho diminuiu e eu aproveitei para me lançar no meu sonho. Tirei um curso de produção musical na ETIC_ e a Azáfama acabou por nascer nesse seguimento. O meu primeiro artista foi Capitão Capitão. O JP Mendes era amigo de amigos e, uma vez, numa conversa de copos no Mexefest, perguntei-lhe se ele não queria ser cobaia do meu projeto final. A partir daí, a coisa foi evoluindo de forma muito lenta. É curioso porque, na altura, o JP Mendes foi gravar uns vídeos para o projeto A Música Portuguesa A Gostar Dela Própria, com a Joana Barra Vaz. Comecei a falar com ela e acabámos por editar um EP. O próprio EP de Capitão Capitão (que contou com a participação d'O Martim, no baixo) foi gravado em casa do José de Castro (Tupã Cunun). Também comecei a trabalhar com ele. Depois, como o Zé e a Joana eram muito amigos do João Gil, aconselharam-me a ouvir umas músicas que ele estava a fazer para o projeto a solo (Vitorino Voador), tive umas reuniões com ele, gostei imenso daquilo que estava a ouvir e também lhe lancei o convite. Por outro lado, o JP Mendes foi convidado para fazer a primeira parte dos Trêsporcento no Musicbox, eles tinham uns amigos em comum, e acabei por ser eu a tratar das coisas nesse concerto. Criou-se uma empatia e, passados alguns meses, lançaram-me o desafio de começar a trabalhar com eles. Todas estas ligações, em conjunto com uma experiência que fizemos há algum tempo para a rádio Sudoeste TMN, acabaram por ser as grandes impulsionadoras destas festas", concluiu Pedro Valente, que, no sábado passado, acabou por ser chamado ao palco por Martim Torres (O Martim) para receber a devida ovação por parte de artistas e público.

O espetáculo seguiu ao comando dos TV Rural, que trouxeram a energia necessária para esta fase da noite. "Nós, como todas as outras bandas desta família, só cantamos canções originais e em português", exclamou David Jacinto antes de se atirar a "Correr de Olhos Fechados", colocando em evidência a sua postura caricata (a tal personalidade peculiar que falávamos há pouco; uma espécie de mistura entre Mick Jagger e Adolfo Luxúria Canibal). Na companhia de Gonçalo Ferreira e Vasco Viana (guitarras), João Pinheiro (bateria) e João Gil (baixo), David Jacinto dominou o palco, conquistou a plateia, e deu vida a canções como "Escafandro", "Quem Me Chamou" e "Saio Daqui a Olhar Em Frente".

Logo a seguir, foi a vez d'O Martim trazer sonoridades dançáveis ao Teatro do Bairro. Os concertos do artista têm por hábito ser carregados de boa disposição e humor quanto baste, e a performance de sábado à noite não foi exceção à regra (há tempos atirou os seus próprios CDs em estilo frisbee para a plateia, desta vez voaram mãos cheias de preservativos; o que nos guardarão episódios futuros?). "Tu Não És o B Fachada" foi a primeira de três canções a ser interpretada pelo músico, secundado por Ana Cláudia nos coros, David Pires na bateria, Lourenço Cordeiro (Trêsporcento) na guitarra e António Quintino no baixo. Seguiu-se "Honda Blues" e o habitual "Banho Maria", com o músico a chamar vários artistas ao palco - entre eles, PZ, o convidado especial da noite - para contribuírem nos versos e refrães da música.

Uma das grande novidades da edição deste ano do evento Azáfama no Bairro foi a presença em palco de um artista alheio à editora. "Apesar da festa do ano passado ter sido um sucesso", contou Pedro Valente ao Palco Principal, "não queria repetir a fórmula com a mesma exatidão. Por isso mesmo, este ano, decidimos abrir as portas a um convidado". PZ foi o outsider escolhido para encerrar a primeira metade desta festa; seguir-se-ia uma fase electrónica, a cargo dos Hombres con Hambre (projeto de João Gil, António e Zé Vasconcelos Dias, que junta melodias de sintetizadores às quebras de ritmo típicas do drum & bass) e os sets de Pedro Valente e Diego Armés.

"Eu sou o PZ, e com PZ quem ganha é você" - assim se introduziu Paulo Zé Pimenta, a pessoa que se encontra por detrás dos temas "Croquete" e "Cara de Chewbacca", autênticas febres da comunidade cibernauta e, se no guiarmos pelo nosso vizinho do lado que não se cansou de implorar por "Chewbacca" durante o concerto todo, as únicas peças do seu repertório que são conhecidas. Sozinho com a sua caixa de ritmos, PZ lançou-se numa viagem pelo seu mundo, um lugar preenchido por batidas minimais e rimas com metáforas e alegorias que não lembram nem ao mais inspirado Pedro Abrunhosa. "Autarquias", "O Que Me Vale És Tu", "Sem Ponta Por Onde Se Pegue" e "Mundo" foram algumas das músicas que fizeram parte do alinhamento do concerto de PZ - talvez um pouco longo, tendo em conta o conceito do evento -, que, como seria de esperar, atingiu o clímax em "Croquete" e, para regozijo do nosso vizinho do lado, "Cara de Chewbacca", cantada em formato banda com bateria, guitarra e baixo.

Assim chegou ao fim mais uma festa da Azáfama, mostrando, mais uma vez, que existe algo no conceito de editora independente que seria impensável encontrar numa major. Um sentimento que vive longe dos milhões, abrigado dos interesses, à margem das visualizações no Youtube, das reproduções no Spotify, e das listas de Airplay. Um sentimento único, livre, em bruto. Um sentimento independente. Parabéns, Azáfama!

Manuel Rodrigues