O músico Xullaji, que atua esta madrugada como Prétu xei di kor, no Festival Músicas do Mundo, em Sines, alerta para o efeito da “mercantilização da música”, realçando que “a palavra é aquela que sofre”.
Nascido na periferia de Lisboa, de origens cabo-verdianas, o músico, referência do hip hop português, sublinha que hoje continua a haver rap de intervenção, mas, como a música em geral, também este tem sido aproveitado por “uma indústria capitalista que higieniza um bocado a palavra e deixa só o beat [a batida]”.
Ora, “é preciso que a palavra continue, (…) porque a palavra também é ritmo ali [no rap], a palavra está a puxar, não é só o ritmo que é andamento, a palavra é galvanização, ‘bora, bora, bora’”, agrega.
“Muita da música negra foi feita em espetros de resistência (...) e essa palavra não pode ser de repente tirada porque as pessoas só querem dançar ou só querem curtir aquela ‘vibe’ mais leve da música”, apela.
Nesse sentido, Xullaji (que já foi Chullage e agora tem-se apresentado Prétu) vai buscar inspiração a músicos como Princezito, Pantera, José Carlos Schwarz, Norberto Tavares, José Mário Branco, Fausto.
Na introdução ao projeto Prétu Xei di Kor (cheio de cor, em crioulo), afirma: “Prétu não têm falta de cor, prétu não são de cor, prétu são coloridos, prétu são xei di kor [numa tradução livre da língua nativa cabo-verdiana].”
O conceito que Xullaji leva a palco assenta no preto como a absorção de todas as cores e não a ausência de cor e “claro que é um manifesto político”.
“Eu cresci a ouvir ‘tu és de cor ou preto não é cor’”, lembra, realçando que as duas “não-cores”, "branco e preto”, foram construídas “uma contra a outra”.
“Somos de cor? Qual cor? Tantas cores lindas… tantas cores…”, contrapõe.
O palco recebe a força dos ancestrais, com “todo o aprendizado, das pessoas que fizeram a luta”, não deixando de ser também um “espaço de liberdade”, que desconstrói “esse ‘prétu’ que se construiu nestes anos todos de colonialismo [português]”.
Na música “Prétu xei di kor”, Xullaji promete que nada vai ficar retido na sua laringe. “Sinto que já houve – e às vezes há – vários momentos em que as coisas que eu digo ou não são bem aceites ou são abafadas. A necessidade de falar é porque, sendo um filho de cabo-verdianos que cresceu na Margem Sul no fim dos anos 1970/80, voz não foi uma coisa que nós conhecêssemos”, recorda.
O rap permitiu-lhe perceber que era possível “ser poeta sem ter o nono ano, sem ser o fulano tal”, porque o segredo está na palavra.
“No momento em que eu sinto que às vezes a palavra e algumas das lutas que se fizeram estão a ser, não é amordaçadas, mas mercantilizadas, é importante pegar outra vez na palavra e dizer ‘eu vou dizer tudo o que tenho para dizer e não só o que fica bem na fita'”, avisa.
Xullaji reconhece que algo falhou na passagem da memória do que foi a ditadura e a censura que lhe foi pele.
“Qualquer coisa falhou, de certeza. Eu acho que houve um momento que se comemorou mais o 25 de Abril do que propriamente passar os seus valores. (…) Tudo o que estava em causa (…), a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação, tudo isso [está] a ser posto em causa e nós a celebrarmos Abril, em vez de dizermos é preciso continuar a puxar por Abril”, assinala.
O 25 de Abril de 1974 – diz – “foi o início, uma porta que se abriu, mas que se abriu com muita luta, de muita gente que tinha muito menos (...), mas as gerações seguintes tinham de continuar a puxar, em vez de se encostar à sombra da bananeira”, aponta.
Mas a responsabilidade é de todos: “Acho que nos aburguesámos todos um pouco, com o dinheiro da União Europeia, com isto e com aquilo… O pessoal achou ‘ai, agora, há aqui uns privilégios, está-se bem’, mas os privilégios já bazaram e fica tudo chateado e acha que a culpa é de…”, retrata, sem concluir.
Apesar disso, o artista tem “esperança” nas novas gerações. “Há vários jovens que não querem só dançar, também há jovens atentos”, destaca.
Por outro lado, “há uma enorme desinformação, uma enorme propaganda e um ruído que faz pensar que dantes estava-se bem”. Não se estava – assegura.
À luz de casos como o de Cláudia Simões, que foi condenada por morder o polícia que a agrediu numa paragem de autocarro, depois de ter dito ao motorista que a sua filha, de oito anos, não tinha o passe consigo, o músico criou o hino “Eu quero é celebrar o prétu em vida”.
Essa afirmação tem “toda” a importância, porque “há uma violência de Estado que não é punida”, denuncia.
“Alguma da violência do Estado é ‘mainstreamada’, mas não é toda, há sempre permanentemente muita violência de Estado. Há uma mobilização brutal quando uma pessoa morre, mas, depois, há toda uma violência mais invisível que não mobiliza ninguém”, compara, recordando o caso de George Floyd, afro-americano estrangulado até à morte por um polícia, em 25 de maio de 2020.
“Toda a gente se mobilizou, mas tinham sido agredidas ou morrido várias pessoas em Portugal durante o meu tempo de vida e a mobilização foi muito mais ténue. A sociedade portuguesa em geral mobilizou-se com o George Floyd", mas também houve "[Bruno] Candé [assassinado em 25 de julho de 2020 em Moscavide, vítima de crime de ódio racial], ‘Kuku’ [Elson Sanches, jovem de 14 anos morto pela polícia em janeiro de 2009], Cláudia Simões…”, elenca.
“É uma conversa para dentro: mais do que nos mobilizarmos quando morrem é irmo-nos mobilizando enquanto as pessoas estão vivas”, apela.
Questionado sobre a vontade e abertura da sociedade portuguesa para fazer essa discussão, Xullaji nem hesita: “Neste momento, não. Neste momento, acho que as portas estão a fechar-se para todas essas discussões.”
Fora o que se passa aqui e ali, na Academia por exemplo, o resto não lhe deixa dúvidas, a ele que vive num bairro onde ouve as pessoas no café todos os dias: “Estão todos contra todos (...). É preciso, mais do que tudo, não fazer as conversas só dentro dos círculos, onde as pessoas já concordam umas com as outras.”
“É preciso sair dos círculos de consenso, ir, estar na rua, dizer, ‘olha, mas porque é que tu te sentes assim em relação àquele cigano, em relação àquele indiano?’”, questiona.
Mas essa conversa de base não existe e o debate está fechado “numas cúpulas quaisquer”, ao mesmo tempo que “há uma institucionalização”, que celebra o dia sem racismo, e “as pessoas estão chateadas e canalizam para os sítios piores”.
A 24.ª edição do Festival Músicas do Mundo, em Sines, termina no sábado.
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