Há um animal, grande, felpudo e tons amarelos que traz consigo memórias amaldiçoadas e poeira cintilante, que é um convidado de honra no Indielisboa.

"Um Animal Amarelo", o mais recente trabalho do jovem cineasta brasileiro Felipe Bragança, centra-se na história com ecos coloniais de um aspirante a realizador que decide refazer a sua vida como “caçador de riquezas” em Moçambique, sempre acompanhado pelo fémur dos seus antepassados e por um "espetro animalesco".

O SAPO Mag conversou com Catarina Wallenstein, atriz que tem ganho nome na produção nacional em trabalhos de Manoel de Oliveira, João Botelho e Sérgio Tréfaut e que, do outro lado do oceano, tem trabalhado com Felipe Bragança numa reconstrução identitária brasileira, primeiro com "Tragam-me A Cabeça de Carmen M.", sobre uma atriz portuguesa que se acha perfeita para interpretar o papel de Carmen Miranda, e agora com o filme que encerra este sábado (5) a 17ª edição do festival IndieLisboa.

No IndieLisboa do ano passado, vimos "Tragam-me A Cabeça de Carmen M.”, que codirigiu com Felipe Bragança. Agora, chega-nos “Um Animal Amarelo”, mas sem a Catarina creditada na realização.

Na verdade, "Um Animal Amarelo” foi rodado antes do “Tragam-me A Cabeça de Carmen M.”, um filme menos ambicioso. Conheci o Felipe durante a rodagem do “Um Animal Amarelo” e decidimos trabalhar no “Carmen” durante a sua pós-produção, para estar pronto como filme-reação. Para existir com maior prontidão. Normalmente nos filmes aplicamos um maior desenvolvimento, aquele tempo todo para escrever, mas “Tragam-me A Cabeça de Carmen M.” foi uma experiência mais artesanal, um processo mais imediato com o momento presente, uma convulsão tão rápida para com esse tempo. Quisemos reagir e, por isso, já estamos a pensar fazer outro.

Em termos políticos, havia qualquer coisa de atualizado em "Tragam-me A Cabeça de Carmen M." em relação a este.

“Um Animal Amarelo” é um filme de camadas sobre a identidade brasileira, que é atravessada pelos tempos. Nós, portugueses, também albergamos essas questões, visto que o filme lida com o colonialismo presente na sua sociedade. Quanto a essa atualização, é bem verdade que os tempos estão a mudar e muito rapidamente, mas "Um Animal Amarelo" aborda questões que não desatualizam em um ou dois anos. O Felipe começou a trabalhar nos filmes antes da eleição de Bolsonaro. Em 2017.

Em “Um Animal Amarelo”, as televisões tem importância para o seu contexto temporal. Quando o protagonista embarca na sua aventura africana, notamos que o Brasil está atento ao "impeachment" da presidente Dilma Rousseff.

Exatamente! Foi uma localização temporal e como o Brasil atravessa durante estes anos, em particularmente desde o golpe. Penso que devemos chamar os bois pelos nomes. Porque do "impeachment" ao golpe existe uma mudança do "status quo" que vai da irresponsabilidade de uma pessoa a uma engrenagem de um movimento ainda maior. Aliás, a Dilma já foi ilibada do que fora acusada, ou seja, ela poderia concorrer outra vez. Só que o seu processo de destituição deu espaço a este atual governo que está a desmantelar o Brasil.

No fundo, “Um Animal Amarelo” é uma fabulação da consciência colonial, quer do Brasil como também de Portugal?

Como cidadãos portugueses temos muito que olhar para a nossa História. “Um Animal Amarelo” é uma coprodução luso-brasileira que foi filmada em Rio de Janeiro, Beira (Moçambique) e Lisboa, criando uma rota comum com a da Escravatura. Permitindo aos dois países repensar o passado que carregamos nas costas. Mas isso depende de cada um e julgo que poucos estão abertos para o fazer.

Mas começa a questionar-se nos manuais escolares a nossa história colonial, nomeadamente a chamada Era dos Descobrimentos.

Sim, começa a existir, mas de forma simplificada. Aliás, um dos problemas de hoje é a facilidade de acesso a informação bastante simplificada, que traz pouca densidade de pensamento. Nós temos que olhar para tudo isto de forma mais complexa e não sermos abatidos pela culpa, porque esta não interessa para nada. O que interessa saber é de onde se vem e para onde vai e o nosso papel de causa-consequência efetivo no desenvolvimento socioeconómico de vários países.

Em relação ao cinema, os franceses “abriram” mais rápido essa desconstrução colonial, enquanto o português ainda vai em pequenos passos.

Sim, só que eles não passaram por uma ditadura de 40 anos que exaltava sentimentos de patriotismo de forma abnegada e pouco explicada. Como alguns “F” que nos ajudaram a construir uma identidade muito básica. A exaltação da bandeira através dos “futebóis” e dos seus respetivos clubismos. Reduzir a identidade nacional somente ao “Fado". Faz parte dela, mas nós não somos apenas isso. Não sou só a Catarina, não sou só uma atriz, não sou só uma mulher e não sou só uma portuguesa. Dentro de mim podem existir 50 pessoas diferentes, mas a questão é quantas delas quero conhecer, dentro da minha história, da minha família. Acho que devíamos ter um pouco mais de vontade de ser curiosos e deixar-nos surpreender.

Outro fator que julgo ser a essência das aventuras deste “herói” é que todo o filme traça um quadro geral do privilégio branco.

Talvez sobre o ridículo e a impossibilidade da utopia do "privilégio branco". O herói branco de “Um Animal Amarelo” é um anti-herói e o facto de ser um privilegiado branco não o faz dele heroico. Não é de todo uma boa pessoa, é um anti-herói que vivencia acasos e onde ele nem é sempre louvável. Isto é uma história onde os negros nem sempre os "bonzinhos", o branco não é nem o "bonzinho" nem o "mauzinho". Por outras palavras, nós não somos uma camada e o filme em si não recorre ao maniqueísmo, apenas desafia o que é "normalizado" para entendermos que existe uma faceta trágica em cada um de nós.

No fundo, este “anti-herói” brasileiro, como a Catarina lhe chama, que generaliza a ideia de privilégio branco, é um homem ridículo. O privilégio branco é, isso mesmo, “ridículo”?

Sim. Contudo, julgo que, na cultura portuguesa, não temos essa capacidade de auto-deboche, de ridicularizar-nos e, no fundo, penso que seria algo que individualmente nos enriqueceria bastante. Desde 1500 que andamos a exaltar e a glorificar os nossos feitos, o que é muito ridículo porque somos um país muito pequeno, muito provinciano e, ao mesmo tempo, com mil e uma qualidades. Não sou nenhuma traidora da pátria por constatar defeitos ou fragilidades no meu país. Trazia-nos a complexidade que falta ver essas contrariedades e não somente vermo-nos como um povo simplificado de valores tatuados pela ditadura. A nossa geração ainda é herdeira do Estado Novo, ainda somos medrosos. Não posicionamos ainda porque ainda temos medo do que o outro pensa, fruto de anos e anos de denúncias e do constante peso da Igreja. É uma carga gigantesca que carregamos às costas e não queremos falar.

Abordemos o futuro, mais especificamente o cinema e a COVID-19. Acredita nessa coexistência nestes novos tempos?

O cinema continuará a existir depois da COVID-19. Não me preocupa verdadeiramente o cinema, tendo em conta a falta de sustentações políticas culturais que alimentem um setor que não só está desnutrido como é necessário à boa saúde da nossa democracia. Evidentemente que o Estado tem que ter um papel importante no apoio da criação plural, independente e diversificada. Não podemos todos depender de plataformas, marcas, curadorias empresariais para estarem a criar produtos massificados, todos parecidos uns com os outros, só porque sabe-se à partida que vai resultar a nível de bilheteira.