"Todos os Mortos”  é um filme de época sem o ser, e um filme de género sem o assumir: uma história na passagem do século XIX para XX que demonstra um Brasil a posicionar-se de frente para a República após a abolição da escravatura. Mas os fantasmas persistem e assombram três mulheres de gerações diferentes que residem numa das mais movimentadas avenidas de São Paulo.

Após a sua estreia mundial no Festival de Berlim, este ensaio sobre a cegueira - o racismo escancarado no Brasil, muito dele revelado à luz da governação de Jair Bolsonaro – estreou na 17ª edição do Indielisboa esta quarta-feira (26) e repete na segunda (31), no Cinema São Jorge.

Caetano Gotardo co-realiza "Todos os Mortos" com Marco Dutra, aprofundando a cooperação na fase de montagem do grande sucesso “As Boas Maneiras”. Ambos são recentes e importantes nomes de uma vaga de cineastas brasileiros que usa géneros fantásticos para retratar realidades sociais e políticas do seu país.

O SAPO Mag conversou com os dois realizadores sobre esta atmosférica obra que invoca um passado tão presente por estes dias no Brasil.

O Brasil de ontem, hoje e de amanhã

Marco Dutra e Caetano Gotardo

"Todos os Mortos" teve um "parto" difícil, com um processo criativo do guião à montagem que foi de 2012 a 2019. E que para acompanhar a rápida metamorfose por que passava o Brasil, acabou por ser um filme "alterado pelo tempo".

“Evidentemente, começámos a escrever num tempo em que o Brasil não está no estado em que se encontra hoje. […] Queríamos discutir uma herança em que ambos percebíamos que ainda se mantinha presente na sociedade brasileira. Até porque, muitos aspetos que desenharam no fim da escravatura permanecem como desenho-base do Brasil de hoje. Isso era percetível em 2012, hoje ainda mais evidente”, destaca Caetano Gotardo.

“Um ponto positivo neste hiato, de 2012 até hoje, é que as discussões à volta das relações raciais foram aprofundadas [...] entraram, por fim, no campo da discussão popular, no nosso quotidiano. […] Também, sobre as relações sociais, desfez-se a ideia que persistia na sociedade brasileira de uma ilusão de igualdade social. Mas só isso ficou como ponto positivo. A violência aumentou, as desigualdades aumentaram e um certo orgulho em aclamar um preconceito ou ostentar uma referência a superioridade tem sido cada vez mais exposto", diz o realizador.

“Estamos em 2020 e o fim oficial da escravatura deu-se em 1898, tendo sido celebrado como uma conquista social, mas que era apenas um passo em direção a outras que poderiam ter acontecido naquele momento, mas que não aconteceram. A abolição da escravatura em muitos países, inclusivamente no Brasil, dá-se quando uma certa elite estava pronta para lidar economicamente com esse fim. […] Só que a abolição em si não resolve os problemas sociais de um país”, acrescenta Marco Dutra.

“Quando eu e o Caetano estávamos a refletir que período deveria ser abordado no filme, encontrámos esta data, a de 1899, quando o fim da escravatura e o início da república coincidem, ou seja, o fim do Império. O Brasil continua a viver o seu período republicano, por isso era interessante olhar para o começo de tudo e constatar o que se mantém igual em termos sociais e raciais. E deparamos com isso mesmo, como estes fatores que ainda se mantêm na nossa sociedade atual”, continua.

“Nós, dois realizadores brancos, queríamos refletir sobre essa ‘branquitude’. Porque há uma ideia perigosa de que a cor branca é neutra e também porque essa mesma ‘branquitude’ é algo completamente distinto no Brasil. Eu e o Marco somos brancos no Brasil, mas não, por exemplo, na Europa, onde somos considerados ‘latinos’” refere Caetano Gotardo, frisando que o objetivo aqui foi o de “procurar esse entendimento racial”.

O visível contra o invisível, somos escravos dos nossos fantasmas

Em “Todos os Mortos”, as constantes sequências de “point-of-view” e planos de pormenor que nos simulam uma sensação de textura, cheiro e fisicalidade, são armas utilizadas no embate com o seu meio sobrenatural e o que não se vê.

Os fantasmas, supostas memórias entranhadas nas quatro paredes daquela casa de três gerações de mulheres são apenas sugestões que permitem ao espectador debater se existem ou não. São também representações desta abstração que atravessa o Brasil seguiu até ao presente.

“Sempre foi algo que questionámos e que nos questionava durante a escrita do argumento, inclusivamente pela nossa produtora [Sara Silveira], era se nós, espectadores, iríamos ou não, ver os fantasmas que a protagonista clama ver. Da minha parte, como venho de uma tradição de terror e fantasmas, as pessoas assumiam que isto seria evidente no filme, mas eu e o Caetano conversámos e decidimos deixar essas ‘fantasmagorias’ como algo questionável”, responde Marco Dutra, quando questionado sobre essas decisões (não) visuais.

“As manifestações que experienciamos no filme estão mais próximas do sensorial do que o sobrenatural […] “Todos os Mortos” não é um filme de género mais assumido, em que veríamos outros mundos. À medida que vão entrando elementos contemporâneos, como árvores, carros e barulhos de hoje, isso remexe numa questão mais filosófica que é essa mistura de tempos", conclui o realizador.

“Resistência”, o grito de ajuda de um cinema ameaçado

Sara Silveira em Berlim

Foi de punho fechado e erguido, gritando “Resistência”, que Sara Silveira, a produtora de "Todos os Mortos", se posicionou-se a meio da conferência de imprensa no festival de Berlim, materializando a sua angústia permanente com o presente e futuro do cinema brasileiro.

A governação ideológica do presidente Jair Bolsonaro tem-se traduzido em apoios vetados, negligência e desprezo pela cultura cinematográfica e a conversão de temas como a homossexualidade e críticas políticas em tabus, alguns dos fatores que têm vindo a estrangular e ameaçar o setor.

“Foi um momento muito intenso, o de Berlim. A cultura no Brasil tem sofrido vários ataques neste governo. Criando uma situação horrível e isso já acontecia antes da pandemia, tendo piorado ainda mais", avança Marco Dutra, sintetizando o atual panorama cultural do país.

“A Sara falou muito dominada por aquele momento. Pessoas como ela, com 30 anos de carreira e vários filmes produzidos, sentem uma frustração, uma revolta […] Ela expressou ali uma dor que todos nós sentimos”, acrescenta.

Já sobre uma suposta estreia comercial no Brasil, Caetano Gotardo garante que "Todos os Mortos" tem “distribuidora” e como teve apoios e recursos da ANCINE [Agência nacional do Cinema], tem de ser lançado nas salas por “motivos contratuais”.

Ainda assim, não se fazem previsões por causa da pandemia: "A carreira do filme entrou em suspensão".

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