O que prometia ser um fim de semana relaxante numa residência de quatro amigos na costa vicentina muda completamente quando estes são confrontados com a iminente chegada de alguém do passado que é uma parte crucial e reprimida nos seus pensamentos e corações.
Joana, Simão, Francisco e Vasco parecem ter todos os meios ao seu alcance para serem felizes, mas ficam atormentados pelo “e se” que esta visita inesperada de David trará.
“Golpe de Sol” é a sexta longa-metragem de Vicente Alves do Ó e como o realizador explica em entrevista ao SAPO Mag, nasceu de “um exercício de escrita” e, como é habitual nos seus filmes, o intimismo fez parte do processo de criação.
Tudo começou “no verão de 2010, em que não tinha nada para fazer, por isso fiquei em Lisboa. Aí questionava com os meus amigos aquilo que tínhamos e o que não tínhamos feito ao longo da vida. Então, comecei a escrever todas essas ideias e sentimentos, e ancorá-los dramaturgicamente. Só que tinha um problema com este enredo. Tentava desesperadamente concluir o filme. Porém, apercebi-me que se o fizesse estava a ir contra ideia inicial”, recorda.
"Quis fazer um filme sobre a frustração, porque nós questionamos constantemente as nossas decisões e repensamos pontualmente as nossas vidas. […] Tentei colocar o filme num sítio imponderável", reforça, salientando a importância de conectar os dramas destes personagens às dúvidas existenciais dos espectadores.
Para Ricardo Barbosa, que interpreta Simão (possivelmente a personagem com quem Vicente Alves do Ó mais se identifica), é comum identificar “este filme com a nossa vida, porque é um facto que devemos prioritizar-nos e repensar nela, seja no campo emocional ou profissional”.
Tal como os outros atores com quem o SAPO Mag teve a oportunidade de conversar, Ricardo Barbosa destaca o trabalho do realizador, desde a ideia até ao processo criativo: “Vivemos juntos, os quatro mais o Vicente, durante uma semana, para que surgisse a amizade que nos era pedida, e bastaram dois dias para nos comportarmos como se nos conhecêssemos há anos.”
“Grupo muito coeso, muito forte em termos de energia, e foi tudo graças ao processo criativo do Vicente. O casting, a residência artística, o seu constante trabalho connosco, tornou-nos unidos. Este processo foi fundamental para a nossa fisicalidade”, acrescenta Ricardo Pereira, que desempenha o papel do sempre sedutor Vasco.
Já Oceana Basílio, a única presença feminina em "Golpe de Sol", salienta que o realizador foi “muito sério, muito rígido até ao ponto de atingir a perfeição da personagem. Para que minimamente as personagens fiquem credíveis, mas além de tudo, ele é um autor que nos deixa criar", explica.
Foi com “Quinze Pontos de Alma”, em 2011, que Vicente Alves do Ó captou as atenções, conquistando a seguir o sucesso com “Florbela”, a cinebiografia da poetisa Florbela Espanca. No currículo estão ainda “Al Berto”, uma biografia do homónimo poeta, e as comédias “O Amor é Lindo … Porque Sim!” e “Quero-te Tanto!”.
Mas “ser realizador é frustrante", revela o cineasta.
"Os atores estão sempre a trabalhar, os diretores de fotografia também, assim como os produtores, que acabam um projeto e estão automaticamente noutro. O realizador, não. É comum perguntarem-me quando é que vou começar a filmar e é frustrante ainda ter que marcar uma data para começar a trabalhar um novo projeto. O que é que fazemos durante esse hiato?", pergunta.
"Ser realizador e argumentista é um exercício criativo de escrita e materialização. Escrevo bastante, experimento. Quando morrer, vão encontrar inúmeros argumentos não filmados no meu computador”, explica.
Questionado sobre o facto de trabalhar com guiões da sua autoria, o realizador confessa o desejo de fazer diferente: “Estou com vontade de adaptar um livro, que não seja escrito por mim, e ainda realizar um filme cujo o argumento não é da minha autoria. São experiências importantes e que preciso mais do que tudo.”
VEJA O TRAILER "GOLPE DE SOL".
Um “realizador fascinado pelos seus atores, assim como pelas boas histórias”, citando Ricardo Pereira, Vicente Alves do Ó destaca ao SAPO Mag que a construção de elencos é sobretudo desafiante por ter de enfrentar “preconceitos vincados” de ambas as partes [quer de cinema, quer de televisão].
Em relação a “Golpe de Sol”, a grande provocação foi o casting de Oceana Basílio.
"Embirrei, muitos desvalorizavam-na devido à sua presença na televisão e aconselhavam-me, preconceituosamente, a não trabalhar com ela. E como tal, avancei. A verdade é que acabou por preencher com dignidade este puzzle. […] Isto para dizer o quê? Existem muitos tabus no cinema e é preciso quebrá-los", defende.
Finalizado em 2018 e tendo passado por vários festivais internacionais até 2019 e a ter antestreia especial no Queer Lisboa, “Golpe de Sol” é um dos filmes escolhidos para incentivar os espectadores portugueses a regressarem aos cinemas pós-confinamento. Pelo que aquilo que seria uma história de quatro amigos de férias que aguardam por aquela pessoa crucial transforma-se numa analogia dos tempos de quarentena.
Para Ricardo Pereira, “quem sabe, poderiam ser agora quatro amigos em confinamento. Há sempre uma maturação de um filme […] Esse lado orgânico, a capacidade de motivar diversas interpretações é a magia do cinema”.
Mas não serão as únicas coincidências no cinema de Vicente Alves do Ó em relação à nossa, pouco convencional, contemporaneidade: Ricardo Barbosa voltou a trabalhar com o realizador no ainda por estrear “Amadeo”, a cinebiografia do muito celebrado pintor modernista português, que o ator relembra que morreu durante a pandemia de Gripe Espanhola (em 1918).
"Terminámos a rodagem em dezembro e logo deu-se a pandemia. É uma mórbida coincidência", acrescenta.
Durante a nossa conversa com o realizador e com o elenco, discutiu-se a presença de um quinto elemento, neste caso identificado como David, a força “invisível” que move dramaticamente estes personagens numa “espera que traz ansiedade", palavras de Ricardo Pereira.
Contudo, esse quinto vetor podia ser Johnny Hooker, cantautor brasileiro cujas músicas integram o filme e tomam parte da sua narrativa. As personagens dançam como uma espécie de culto à vida perante as cantigas de remorsos, rancores e mágoas vindos deste artista pernambucano.
“Não consigo ver este filme sem as músicas dele. Foi um casamento feliz”, refere Ricardo Barbosa.
“Descobri o Johnny Hooker quando procurava uma música para a cena da dança. Até porque teria que ter algo antes da rodagem, para que os atores dançassem mesmo aquela melodia. Numa das minhas andanças no YouTube, deparei-me com um vídeo que tinha como título ‘Eu vou fazer uma macumba para te agarrar, maldito’. A minha primeira reação foi de rir, mas quando comecei a ouvir é que percebi que era exatamente isso. Levei-a para a residência e todos nós ouvíamos e assumíamos que aquela seria música a utilizar", conta-nos Vicente Alves do Ó.
“Como o Ricardo Pereira trabalha na Globo, voluntariou-se para encontrá-lo. Nós tínhamos que ter os direitos das músicas”, recorda.
O processo acabou por ser mais complicado do que podiam antecipar: "Inicialmente não conseguíamos ‘agarrá-lo', ele constantemente escapava-nos por entre os dedos. Não respondia a e-mails, redes sociais, nada. Até quando soubemos que ele iria atuar no Rock in Rio, o Ricardo lá arranjou uma amiga para ir falar com ele, e apesar disso não o encontrámos. Supostamente, ele chateou-se com a organização e foi embora. [risos] E nós a desesperar, precisávamos das músicas até finalizarmos a produção, e mesmo assim decidi arriscar. E até conseguirmos entrar em contacto com ele era com os seus sons que trabalhávamos. Um drama!”
"A Pandora [Cunha Telles, produtora do filme] pressionava para que terminássemos, visto que o filme iria fazer primeiro carreira internacional, por isso sugeria a utilização de outra música e eu, num ato desesperado, envio uma mensagem ao Johnny no Instagram e ele... respondeu! [risos] (…) Nesse dia, ele estava em Lisboa, e então combinámos um jantar e discutimos a questão dos direitos. Como é percetível, ele cedeu-os", conclui o realizador.
Enquanto isso, Oceana Basílio menciona a importância da existência de um artista como Johnny Hooker, um “apologista das igualdades”, e inclusive das suas letras, que assumem, sem capas algumas, a sua homossexualidade.
E acrescenta: “Desde sempre que isto existe [homossexualidade], e continuamente finge-se que não. Escondemos atrás de religiões, políticas, e outros, para nos convencerem que isto não é a realidade … Não, a homossexualidade existe e faz parte da nossa realidade, então porque não aceitá-la?”.
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