Selecionada para a secção competitiva do Festival de San Sebastián do ano passado, "Patrick" remete-nos a um enredo de confrontos existenciais e identitários de um jovem português que regressa a casa, após ter sido raptado e levado para França enquanto criança. Aí nasce a dicotomia que servirá de conflito interno, sob a assinatura constante de Patrick / Mário (interpretado com intensidade pelo ator Hugo Fernandes).
Como realizador e argumentista, por detrás do filme está Gonçalo Waddington, que pode muito ser um dos atores portugueses mais reconhecidos pelo grande público, mas o que indicia esta sua estreia como realizador e argumentista nas longa-metragens é que se poderá tornar num dos futuros signatários do cinema nacional.
A SAPO Mag falou com o célebre ator de produções como “O Capitão Falcão” e “As Mil e Uma Noites”, e a série “O Último a Sair”, sobre este passo emancipado na esfera autoral e aquilo que tanto deseja contribuir no nosso panorama cinematográfico.
Gostaria de começar com a questão de onde surgiu a ideia para este filme e também mencionar a invocação que a muitos de nós irá suscitar – o trágico caso Rui Pedro. Houve inspiração?
A primeira imagem que posso associar foi extraída de uma notícia que saiu por volta de ‘94 e ’95, sobre uma menina que fugiu de uma casa de alterne no norte de Espanha e que foi encontrada. Por volta das cinco da manhã, à beira da estrada e já com os pés ensanguentados. No dia seguinte que a polícia percebeu que ela tinha fugido de uma casa de alterne, e que lá se encontravam mais raparigas que foram raptadas. Bem, mas isto é somente a imagem – alguém a fugir de uma situação de terror – e o que terá levado a rapariga até aquele momento. Na altura não tinha maturidade suficiente para escrever.
Depois de alguns anos, aconteceu o caso do Rui Pedro, do qual muitos filmes foram feitos a partir desse tema ou semelhante, como foi o caso de “Alice” [filme de Marco Martins, em 2005], em que participei e expunha o ponto de vista dos pais da criança desaparecida. Nessa altura já questionava o que poderia pensar o outro lado, o da criança. Que processos físicos e psicológicos esta passaria numa situação de sequestro/rapto? Mais do que isso, quais as consequências se tal estado fosse prolongado?
E daí surgiu a minha ideia para este filme. É fácil e correto associar isto ao Rui Pedro, mas para já era incapaz de aproveitar essa tragédia vivida pelos pais, amigos, etc. Aquilo diz respeito a eles e legalmente deve ser investigado, seja judicialmente ou por meios jornalísticos. Algo que ajude.
Mas a fantasia aqui é esta: isto não é inspirado em ninguém. Que eu saiba, estas personagens e situações não existiram nem aconteceram. A questão é o que é que lhe vai acontecer quando for exposto às suas identidades – as duas [Mário/Patrick]? Obviamente que a sua antiga desmorona como uma barragem, possivelmente porque fora mal construída, e como tal é obrigado a confrontar-se com a família, amigos. Que não recorda nem mantém relações afetivas. “Quem é que eu sou?”. Isto resume a minha ideia. Aquela que pretendia explorar para o filme.
E estamos a falar de um filme, em certa parte, corajoso em colocar essas questões, remexer em identidade e sobretudo a desconstruir ideias fixas de maternidade/paternidade, tendo como experiência um hiato.
O que propus/imaginei neste filme foi a imagem de uma criança de 10 anos que se recorda de "coisas" boas que já não tem, como o pai, os seus abraços, da comida, etc. E a um determinado momento, essas mesmas memórias tornar-se-ão dolorosas, por isso devem-se apagar a todo o custo. Esta criança sentir-se-á culpada, por sentir que não fez o que devia, não fugiu quando devia, e a certa altura pensar que os pais já se esqueceram dele – não vieram procurá-lo ou não fizeram o suficiente. Então o pensamento que fica é este: se não tenho, vou fazer por odiar, um processo psicológico (a meu ver). Se aquilo que tenho não o posso mais ter, então é porque não o mereço? Ou é não, porque não quero? O cérebro diz-lhe que ele não quer aquela vida, aquelas "coisas". Por isso, tentei com “Patrick” resolver essa questão.
E como foi trabalhar com o Hugo Fernandes? Construir, juntamente com ele, esta dicotomia de Patrick/Mário.
Ele é muito inteligente e muito intuitivo. Quando lhe explicava estas questões que lhe estou a apresentar, ele entendi-as e imprimi-as numa subtileza que me agradava. Nada vindo dele é exagerado, tudo era transmitido através dos seus olhos como uma verdade absoluta. Nós entendemo-nos muito bem.
VEJA O TRAILER DE PATRICK.
Ainda este ano, o Gonçalo assinou o argumento de um dos mais incisivos filmes portugueses recentes – “Mosquito”. Como tal questiono-o, vê-se como uma nova “face” de uma possível futura vaga de cinema português?
Não. [Risos] Apenas vejo-me a fazer unicamente aquilo que julgo ser verdadeiro para mim. Não pretendo agradar os outros, quero fazer aquilo que desejo ver, e aí suscitarão assinaturas que poderão apelar às pessoas. Se tivesse que fazer o que os outros querem ver, não estaria a fazer nada de genuíno, nem sequer de jeito. [risos] Acho que estou cada vez mais perto daquilo que pretendo seguir em matéria de cinema. Quanto às “faces”, temos tantas caras e até mesmo caras mais velhas com trabalhos incríveis. Sou mais um num conjunto muito forte a fazer cinema.
Esta aproximação ao seu desejo é evidente. “Patrick”, em todo o caso, foi fruto de um longo processo de criação já iniciado com as suas duas curtas-metragens [“Sem Nome”, “Imaculado”].
E não só. Também existe nessa equação o meu trabalho de ator, dramaturgo e encenador. Tudo isso está associado à minha experiência e progressão. Mas claro, as minhas duas curtas, assim como o ato de ver filmes ou até mesmo participar neles. Aliás, aprende-se muito nas rodagens. Curiosamente, para quem está de fora, as rodagens são totalmente desinteressantes, mas quando participamos nelas, nem que seja para segurar num cabo, tornamos parte desta e entramos nessa homogenia. Tive a sorte de estar sempre implicado nas rodagens, não apenas como ator, mas também dando apoio à parte técnica desse processo. De momento, quando estou numa rodagem, mesmo como ator, olho ao redor e percebo perfeitamente como aquilo tudo funciona. Consigo descortinar a mecânica.
Então, veremos no futuro mais deste autor Gonçalo Waddington?
Sim, mas é um pouco como as peças de teatro. Enquanto ator, gosto de contar as minhas histórias, escreve-os e projeto-as. No cinema também. É o normal acontecer.
Fora “Patrick”, há uma pergunta que muitos anseiam que seja respondida. Para quando o confronto entre Capitão Falcão [personagem que Gonçalo Waddington interpretou no homónimo filme de 2015] e o antagónico Flamingo?
Isso não depende de mim. Isso, única e exclusivamente, depende do João Leitão [realizador do “Capitão Falcão”], ele é que se tem que chegar à frente. De certeza absoluta que eu, o David Chan Cordeiro [que interpreta o “Puto Perdiz”] e a pessoa que vai fazer de Flamingo, concordaríamos na hora. Era já! Uma das minhas vontades enquanto ator era de voltar a esse papel, não só ao filme, mas o projeto inicial, à série. Tive a felicidade de fazer aquele episódio-piloto e de ter conhecimento e lido os muitos episódios que daí viriam [para a RTP]. E aquilo… bem… deveria ter sido feito.
Quanto a novos projetos?
Neste momento estou na fase de escrita de um novo projeto. Não sei quando tempo demorará até filmar. É impossível dizer, porque são processos que demoram. Espero ter um guião até ao fim do ano e a partir daí, cá estaremos para falar sobre esse novo filme. Como ator, vou trabalhando em alguns outros projetos, tenho uma rodagem em outubro, e em teatro estreio em setembro. Sim, estou sempre atarefado.
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