“Filmámos em Portugal porque na Suíça não há poesia”.

Quem o afirma são Maya Kosa e Sérgio da Costa, os realizadores responsáveis por “Rio Corgo”, uma das quatro longas-metragens portuguesas presentes no Festival de Berlim e que estreou nas salas de cinema a 5 de maio.

Já galardoados com dois prémios no DocLisboa 2015, eles estiveram no Festival de Cinema de Berlim em fevereiro, surpreendidos e contentes por partilhar na secção Fórum a companhia de artistas consagrados e que admiram, como Wang Bing.

Nesta conversa com o SAPO MAG, estes jovens suíços descendentes de portugueses (Sérgio) e polacos (Maya) contam que decidiram filmar em Portugal porque “a Suíça não tem poesia”.

Misto de documentário e ficção, "Rio Corgo" recria a realidade do senhor Silva, um andarilho que encontram casualmente e cujo dia-a-dia acompanham. Já o novo projeto, ainda sem nome, envolve uma chinesa albina e a compra do santuário de Fátima… por chineses!

Por que resolveram contar uma história passada numa aldeia portuguesa?

SÉRGIO: A ideia inicial deste projeto e que não tem nada a ver com o resultado final é que queríamos fazer o retrato da minha aldeia em Portugal - a Bairrada, no centro do país. Estivemos lá fazendo pesquisas e o primeiro projeto era esse. E aí o que aconteceu foi que encontrámos o personagem principal, o senhor Silva, nessa paragem na aldeia. No dia a seguir ele tinha que sair de lá, tinha que ir para o norte.

MAYA: Ele está sempre a viajar. Fica algum tempo numa aldeia até acontecer algum problema. Neste caso, o senhorio da casa onde ele morava mandou-o embora porque ele tinha uma vizinha cigana que lhe limpava a roupa e o proprietário não gostou. Então o senhor Silva deixou a aldeia. E nós ajudamo-lo a levar as malas, pegámos no carro e acompanhamo-lo.

Quando foi?

SÉRGIO: Verão de 2013. E filmámos no verão de 2014. As filmagens duraram dois meses.

As filmagens foram tranquilas?

SÉRGIO: Sim… bom, de certa maneira [risos]. Tínhamos muito pouco dinheiro – um pouco meu, um pouco da produtora. Só conseguimos apoio para desenvolvimento do projeto, mas não para a produção. Então, de um dia para o outro, decidimos que não podíamos continuar à espera e resolvemos ir em frente. Foi uma pequena equipa – eu mais com a câmara, a Maya na direção de atores. Além de nós só tivemos um diretor de som e uma assistente. É mesmo uma pequena equipa.

MAYA: A rodagem também demorou tanto tempo porque parámos a meio para reescrever o filme. A primeira vez foi porque apareceu a Ana [adolescente que convive com o senhor Silva] e queríamos integrá-la. Assim o filme foi sempre modificando-se.

SÉRGIO: A ideia do retrato da aldeia do início ficou no inconsciente depois de conhecermos o senhor Silva, mas a verdade é que a partir daí o objetivo foi retratá-lo, contar a sua vida. Guardámos a ideia da aldeia também por uma questão prática, no sentido de termos um lugar e sabermos que vamos ficar parados a tentar construir algo com o que temos aí.

MAYA: Mas também fizemos uma viragem determinante em fevereiro porque fomos visitar o senhor Silva e ele estava muito mal de saúde. E o fim do filme, com as imagens da neve, está relacionado a situação em que ele se encontrava nessa altura. Foi algo que determinou a escrita do guião 'depois'.

SÉRGIO: Exato, improvisámos o final, estilo 'vamos tentar isso' e depois quando fomos filmar no verão já tínhamos ideia de como acabar – então tentámos adaptar. Um pouco da estrutura do filme responde às crises que ele tem, a ideia de que está a ficar mais fraco…

MAYA: Mas reergue-se sempre. O filme acabou por ser alguém que vive no limite entre o destino e a vontade de viver.

Pode-se supor então que, tirando a questão financeira, não houve maiores sobressaltos… Pergunto isso porque outras produções portuguesas que chegaram a Berlim foram marcadas por muitos problemas.

MAYA: Os maiores problemas que tivemos foram com o senhor Silva. Ele é uma pessoa muito difícil, muito criativo, mas muito complicado. Todos os dias houve confusões e só depois de um tempo começámos a perceber melhor a psicologia dele. Por exemplo, ele nunca queria fazer aquilo que pedíamos, dizia sempre que não. Então dizíamos ‘Tudo bem, senhor Silva, vamos dizer AÇÃO e faz como achar melhor’. Aí ele acabava por fazer exatamente o que tínhamos pedido antes! Depois de verificarmos isso já sabíamos como lidar com ele.

Também houve a questão da língua. Para nós é mais fácil falar em francês, especialmente os termos técnicos – então ele achava que estávamos a falar nas costas dele [risos]. Depois adaptámo-nos para falar sempre em português. Não sei especificar qual a doença que ele sofre, mas aquelas visões que ele tem no filme são coisas que ele vê mesmo. Então é alguém com uma sensibilidade especial, que já sofre de crises de paranoia.

Na altura do DocLisboa falou-se muito em termos conceptuais, coisas como a “ficção do real”. Vocês tinham estes conceitos em mente?

SÉRGIO: Não havia um conceito, nunca pensámos em fazer algo assim, misturar documentário e ficção, porque esse resultado veio mais da nossa maneira de trabalhar, que é espontânea. Ao mesmo tempo, como estamos a trabalhar com a realidade, tentamos sempre modificar, transformar essa realidade – sejam os personagens ou os lugares – procurar o que achamos de mais bonito…

MAYA: Para mim não interessa apenas a captação, isso não é criativo – quer dizer, pegar na câmara e seguir a vida do senhor Silva não me interessava e das poucas vezes que fizemos isso não deu bons resultados. Mas gosto imenso da matéria, das histórias dele, mas de retrabalhá-las. Por exemplo, como fazer surgir o passado dele, que achei interessante, no presente, sem fazer uma entrevista.

O filme é o encontro da criatividade dele e da nossa. Há um momento em que se sentia muito mal e recebia medicação forte em instituições psiquiátricas. Não queria uma abordagem frontal, pois ele já aí tinha outra personalidade e é por isso que transformámos a realidade daquele hospital em crises no filme. É uma transformação do que se está a passar na realidade.

Vocês já tem um novo projeto pensado nessa base? Acham que vai funcionar sempre essa mistura de documental com espontâneo?

SERGIO: Vai continuar porque é mesmo assim que temos as ideias, a nossa criatividade funciona assim. Temos sempre uma coisa que nos interessa desde o início, que faz parte da realidade concreta, como por exemplo o senhor Silva, mas depois começamos já a imaginar coisas e a construir sobre esta realidade. Então já estamos a fazer ficção. Ao mesmo tempo é algo espontâneo.

MAYA: Durante a pós-produção do "Rio Corgo" andámos numa rua no Martim Moniz e encontrámos uma chinesa albina. Foi como um 'raio de luz' no meio do Martim Moniz [risos]. Depois de alguns dias fomos falar com ela e ela vai fazer de Nossa Senhora de Fátima. A ideia do filme é falar sobre a expansão chinesa em Portugal.

Já tem nome?

MAYA: Não porque estamos muito no início, por enquanto só temos uma ideia. É que os chineses estão a comprar tudo e aqui em Portugal vão comprar a cultura – com a Fátima incluída. É um documentário de antecipação.

E vocês não têm vontade de fazer algo com uma grande equipa, um financiamento maior?

SÉRGIO: Ainda há pouco falávamos se um dia vamos fazer uma grande produção…

MAYA: Mas acho que não, não se adequa bem à nossa maneira de trabalhar. A nossa ideia é fazer filmes assim, criar no momento. Seria muito difícil fazer com uma grande produção. Não haveria liberdade pois, com quatro pessoas, podes fazer o que queres. Claro que é difícil, corres o risco de fazer um filme frágil, não profissional.

SÉRGIO: Sim, é mais artesanal.

MAYA: Além disso, não temos vontade de filmar na Suíça, não há poesia. Lá está tudo tão acabado, tão 'perfeitinho', não há margem para poesia. Às vezes penso em fazer um filme lá, mas é mais interessante em Portugal.

Essa visão é um pouco a “Lisbon Story” [filme de Wim Wenders], um olhar da Europa do norte sobre Portugal…

SÉRGIO: Sim, e também de Alain Tanner, "La Ville Blanche" [A Cidade Branca].

E que tal este convite para participar no Festival de Berlim?

SÉRGIO: Nós fazemos filmes, mas estamos sempre a ver outros trabalhos. Vamos a muitos festivais e sempre pensei na secção Fórum [para a qual “Rio Corgo” foi selecionado] e desejava há muito estar cá como espectador. Então, de repente, estou aqui com um filme… é extraordinário.

MAYA: Sim, e estarmos na mesma seção que Wang Bing, que Eugene Green, ao lado dos mestres!

Trailer "Rio Corgo".

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