No dia 9 de junho, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (av. de Berna) e a 11 na Cinemateca Portuguesa, um dos filmes mais revolucionários da história será objeto de debates abertos ao público que reunirão académicos e cineastas: o documentário mudo "Nanook, o Esquimó", realizado por Robert J. Flaherty e estreado a 11 de junho de 1922.

Na Cinemateca decorrerá a exibição do filme “A Boatload of Wild Irishmen”, de Mac Dara, sobre a contribuição de Flaherty para o género documental, seguida de uma conversa com José Manuel da Costa, um dos grandes estudiosos de “Nanook”.

O SAPO Mag conversou com Luís Mendonça e Pedro Florêncio, os dois organizadores do evento “Centenário Nanook: repensar o real a partir do legado de Robert Flaherty”, que mergulha na obra revolucionária do cineasta norte-americano que, em 1922, rumou às inóspitas paisagens do Canadá profundo para retratar a vida de uma comunidade Inuit.

A realizar um documentário (noção que lhe era desconhecida) com um olho na ficção e algumas sequências ensaiadas, Flaherty eletrizou o público (e a crítica...) da altura – encantados com a descrição de um universo desconhecido.

Caçando morsas com arpões

A câmara de Flaherty acompanha a vida dura de um Inuit, seguindo a sua luta e a da família para sobreviver num ambiente hostil. O documentário mostra Nanook a caçar uma morsa, as suas atividades de pesca, a construção de um iglu e, numa das cenas mais deliciosas, tomando contacto, num posto comercial, com o gramofone – uma invenção relativamente recente do mundo industrial.

Desde aí, "Nanook, o Esquimó" nunca parou de gerar discussões – principalmente porque Flaherty ensaiou, de facto, várias cenas – incluindo a do gramofone, onde Nanook, cujo próprio nome, aliás, era uma invenção (o verdadeiro era Allakariallak), finge desconhecer o artefato que já lhe era familiar, para além de usar um método de caçar a morsa já antiquado e pertencente a gerações anteriores. Tampouco morreu de fome, conforme a dramática informação dada por uma das legendas iniciais, o que fez o filme entrar na esfera de um longo debate sobre autenticidade, natureza da representação do real e da própria noção de documentário.

A “gaveta onde cabe tudo”

“De facto, esse é um debate partido em dois”, observa Luís Mendonça, um dos coordenadores do projeto ao lado do também professor e cineasta Pedro Florêncio.

“Muito gente o vê como um documento simples, apenas um retrato da vida dos inuits. Mas até foi a esposa de Flaherty, Frances, a defender outra coisa: o termo documentário é-lhe exógeno. Na realidade, ele é um poeta que explora o real, mas sem se restringir a ele”.

Conforme Mendonça, um dos palestrantes e dos principais estudiosos do tema em Portugal, José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa, defende uma terceira via, onde acredita que nenhuma das anteriores está totalmente correta: entre a exploração poética e o registo, o documentário funcionaria como uma “gaveta onde cabe tudo”.

O “paraíso perdido”

“Tratava-se de uma poética enquanto fabrico de um objeto de arte”, reforça Pedro Florêncio. “Flaherty abriu caminhos para práticas que ainda hoje podemos ver como desdobramentos desta abertura. Por isso, fizemos convites a realizadores, teoricamente distantes, que têm em comum uma relação tensa com o real enquanto matéria documental, mas também criativa”.

Ainda sobre as polémicas das “encenações”, Mendonça acrescenta um outro aspeto: há uma tentativa honesta da parte de Flaherty em resgatar o que ele acreditava ser uma espécie de paraíso perdido quando confrontado com civilização. Em última análise, "Nanook" é um projeto que pretende salvar as tradições, aquelas práticas antigas, os gestos, as formas de organização familiar e económica.

Uma nova forma de fazer cinema

A influência do filme sobre a história do documentário e da docuficção é enorme e prossegue nos dias de hoje. Conforme observa Pedro Florêncio, trata-se de uma forma de fazer cinema que não se coaduna com os moldes e os tempos de produção que se começavam a normalizar.

“Essa forma de fazer filmes implica passar tempo no local de filmagem, em não chegar lá com um guião ou uma história pré-concebida, implica uma partilha com aqueles que se deixam filmar e também num processo de maturação que sofre reviravoltas na montagem. Esse legado continua a estar muito atual e passível de se desbravar”, nota.

"Nanook" vs. "Nosferatu"

Os palestrantes do evento foram, antes de mais, desafiados a esticar o tema da forma mais livre que quisessem – aproveitando as mais diversas possibilidades.

Luís Mendonça, por seu lado, entusiasma-se com uma comparação, à partida fora de propósito, com outro clássico do cinema que completa cem anos, “Nosferatu”. Mas a olhar de perto, é bem possível que exista um grau de parentesco reforçado pelo facto singular de que Flaherty e F. W. Murnau, inclusive, encontraram-se para trabalhar juntos em “Tabu”, que seria o último trabalho do cineasta alemão.

“É [o crítico de cinema] André Bazin quem resgata essa relação”, reflete. “De um lado, havia uma empatia positiva com ‘Nanook’, reflexo de uma espécie de felicidade pura – que acabou por tornar-se uma figura planetária como símbolo de amor, de um homem que mantinha a capacidade de sorrir mesmo sob circunstâncias extremas. Era um programa filosófico humanista”.

Já "Nosferatu", por seu lado, era o seu polo oposto, a representação de todo o mal, mas igualmente fascinante.

“Bazin comove-se pelo facto de ser um filme rodado em cenários naturais, com produção fora do estúdios e da estética expressionista. Representa mais uma tradição romântica de paisagem, de natureza”, observa.

Mas não é tudo: um dos mitos mais divertidos relativos a “Nosferatu” seria a sua natureza “realista”, constando que, afinal, Murnau estaria obcecado por um retrato realista. Assim e inclusive recordando o emblemático “A Sombra do Vampiro”, o filme de 2000 protagonizado por John Malkovich e Willem Dafoe, Murnau estaria apenas a fazer um documentário, na medida em que o ator que encarnava Nosferatu, Max Schreck, era, na verdade... um vampiro!

“Centenário Nanook: repensar o real a partir do legado de Robert Flaherty” é uma iniciativa do ICS em parceria com a Cinemateca Portuguesa.