Uma petição para apoiar o ator Gérard Depardieu , acusado de crimes sexuais por vários mulheres, foi contestada por uma onda de cartas abertas denunciando anos de comportamento repreensível, enquanto o caso causou uma aparente divergência entre o presidente francês, Emmanuel Macron, e a sua ministra da Cultura.
Ícone do cinema francês durante meio século depois de alcançar a fama em meados da década de 1970, Depardieu foi acusado em 2020 de violação e foi alvo de outras duas queixas de agressão sexual, bem como de outras acusações publicadas nos meios de comunicação social.
Ele nega qualquer irregularidade.
Com a sua carreira suspensa, o debate sobre se o catálogo de cerca de 200 títulos do homem de 75 anos deveria ser exibido intensificou-se no mês passado, quando um documentário da televisão francesa intitulado "Depardieu: A Queda de um Ogre", exibido a 7 de dezembro no canal público France 2, o mostrou a fazer à frente de mulheres comentários de caráter sexual sobre mulheres e uma criança durante uma viagem à Coreia do Norte em 2018.
A sua escultura de cera foi removida à pressa do museu de cera Musee Grevin, em Paris; a região do Quebeque, no Canadá, privou-o da sua principal distinção; e o canal público suíço RTS interrompeu a transmissão de filmes onde desempenha um papel de protagonista.
Isto levou dezenas de amigos e colegas do ator a assinarem uma polémica carta pública no Le Figaro no dia de Natal, denunciando um “linchamento de Depardieu” e dizendo que ele tinha direito à “presunção de inocência”.
"Velho mundo"
Os signatários da carta - intitulada "Não apague Gérard Depardieu" - incluíam a ex-primeira-dama e cantora francesa Carla Bruni, as atrizes Nathalie Baye e Charlotte Rampling, a ex-parceira de Depardieu, a atriz Carole Bouquet, ou os atores Jacques Weber e Pierre Richard.
Outra celebridade que assinou o texto foi o realizador Bertrand Blier, que dirigiu o filme "Les Valseuses" ("As Bailarinas"), de 1974, um dos primeiros sucessos de Depardieu e que há muito gera polémica devido às atitudes vulgares expressas em relação às mulheres.
"Gérard Depardieu é, provavelmente, o maior de todos os atores. O último pilar sagrado do cinema. Não podemos ficar calados perante o linchamento que sofre, perante a torrente de ódio que se derrama sobre a sua pessoa (... ) deixando de lado a presunção de inocência de que teria desfrutado, como qualquer outra pessoa, se não fosse o gigante do cinema que é", diz a carta.
"Quando Depardieu é atacado assim, a arte é atacada. Pela sua genialidade como ator, Gérard participa na projeção artística do nosso país" [...] Aconteça o que acontecer, ninguém poderá apagar a marca indelével da sua obra, que marcou a nossa época para sempre. O restante diz respeito à Justiça. Exclusivamente à Justiça", acrescenta o texto.
Num sinal do desconforto causado pela carta aberta, apareceu rapidamente outra assinada por 600 artistas, incluindo as cantoras Angèle e Louane, e o 'rapper' Médine, alegando que o texto de apoio a Depardieu "cuspiu na cara" das suas acusadoras.
“É uma ilustração sinistra e perfeita de um velho mundo que se recusa a deixar as coisas mudarem”, dizia a contra-petição.
Outra petição crítica, intitulada “Discurso ao velho mundo”, foi publicada no domingo no 'site' Mediapart com a assinatura de cerca de 70 personalidades do cinema, incluindo Anouk Grinberg, ex-parceira de Blier.
"Ninguém quer apagar o artista. Mas o talento de Gérard Depardieu não permite a indignidade do seu comportamento", afirmou.
“Defender a arte também significa dizer que ser um artista não nos deve isentar de toda responsabilidade”, acrescentou uma terceira petição publicada no diário Libération, assinada por figuras distintas, incluindo o diretor de teatro Thomas Jolly, que será o mentor da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris de 2024, e o ator Swann Arlaud, que entra em "Anatomia de uma Queda", forte candidato às próximas nomeações dos Óscares.
Também o ator Gérard Darmon lamentou o conteúdo da carta original: “Cuidado para não dizer que, ao tocar em Depardieu, estamos a tocar na arte. (…) É uma treta”.
Em 2015, uma atriz tão popular quanto Sophie Marceau rotulou Depardieu de "predador" pelo seu comportamento nas rodagens, mas esses comentários passaram totalmente despercebidos.
Em entrevista recente dada à Paris Match a propósito da participação numa peça de teatro (citada pelo Le Figaro a 28 de dezembro), Sophie Marceau disse que “as grandes atrizes”, contemporâneas de Depardieu, não o condenam porque “não as atacou”.
“Ele não atacava as grandes atrizes, ia mais para as assistentes abaixo. [...] Vulgaridade e provocação sempre foram a sua arte”, notou a atriz antes de repetir a história que contou no verão ao diário Le Monde de como o ator a tentou humilhar durante a rodagem de "Polícia" (1985), quando tinha 19 anos, levando-a a decidir nunca mais trabalhar com ele.
Descrevendo a “hipocrisia” da indústria francesa perante um comportamento que já achara "insuportável" na altura, recordou: “Todos riam com ele, todos o amavam por isso, todos o aplaudiam por ser quem era. E toda a gente achou que era normal”.
Mas “muitas pessoas viraram-se contra mim, a tentar fazer parecer que estava a ser um estorvo".
Um texto que não é "perfeito"
A controvérsia também se refletiu na política, com a ministra da Cultura, Rima Abdul-Malak, a afirmar em dezembro que o comportamento de Depardieu “envergonha a França” e seria iniciado um procedimento que poderia fazer com que lhe fosse retirada a principal distinção da França, a Legião de Honra.
Mas, dias depois, Emmanuel Macron contradisse a sua ministra, queixando-se que Depardieu, um “ator gigantesco”, foi alvo de uma “caça humana” e rejeitou a sugestão da ministra sobre a retirada da condecoração.
Entretanto, o escrutínio intensificou-se nos últimos dias sobre a petição original de apoio a Depardieu, com alguns dos seus signatários a distanciarem-se agora do texto.
A inquietação cresceu depois de se descobrir que o instigador foi o pouco conhecido ator Yannis Ezziadi, que escreve para a revista ultraconservadora Causeur e é próximo de Julie Depardieu, a filha de Gérard Depardieu, e a publicação da carta num jornal de Direita.
“Assinei um texto para Gérard Depardieu. No entanto, não apoio as ideias e valores associados ao jornalismo que publica esse texto. Dar-lhe visibilidade através do Gérard deixa-me, como podem imaginar, profundamente desconfortável”, disse Carole Bouquet no Instagram.
O ator e realizador Yvan Attal também disse que assinou o texto apesar de não lhe "agradar completamente" e sem ser "contra as mulheres", mas pelo direito de Depardieu "não ser linchado publicamente (…) devemos deixar a justiça atuar”.
Serge Toubiana, antigo líder da prestigiada Cinemateca Francesa de Paris, que também assinou a petição, disse à France-Presse (AFP) que não sabia quem estava por trás do texto, que reconheceu "não ser perfeito".
Dá a impressão “que, por ser um ator gigantesco, isso poderia colocá-lo acima da lei”, observou.
O ator e realizador Jacques Weber lamentou ter assinado o documento, dizendo ter colocado o seu nome "à pressa... como um reflexo de amizade sem perguntar".
“Apesar do amor ou da admiração que os seus amigos, a sua família e a família do cinema têm por ele, não devemos impedir que a verdade venha à tona”, escreveu.
O próprio Ezziadi defendeu veementemente a petição em comentários à AFP, dizendo “não queremos cancelá-lo e não queremos ficar sem ele”, denunciando um “clima de terror”.
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