As acusações de violação e agressão sexual contra o ator Gérard Depardieu acabaram por causar uma fratura no meio cultural francês, dividido entre aqueles que acreditam que chegou a altura de trazer à tona os abusos no mundo do cinema e os que insistem em que é preciso deixar a Justiça fazer o seu trabalho.
A intervenção, no mês passado, do presidente francês, Emmanuel Macron, que numa entrevista tomou partido da estrela, aprofundou essa divisão.
As acusações mais graves contra Depardieu, de 75 anos, remontam a 2020, mas outras atrizes, trabalhadoras da indústria do cinema, do teatro e inclusive jornalistas (entre elas a espanhola Ruth Baza, que o entrevistou em 1995) deram novos e graves testemunhos.
A isto soma-se uma reportagem transmitida na televisão sobre uma visita de Depardieu à Coreia do Norte, em 2018, na qual se vê e ouve a proferir reiteradamente comentários rudes e machistas perante as câmaras.
Cartas públicas de apoio e crítica
Foi uma carta pública de apoio ao ator que abriu a caixa de Pandora: cerca de 60 personalidades do mundo do cinema, da arte e da literatura expressaram a sua admiração pelo intérprete de "Cyrano de Bergerac", que consideram "provavelmente o maior de todos os atores, o último pilar sagrado do cinema" e se insurgem perante o "linchamento que sofre" e o risco de ser "cancelado".
A resposta a essa missiva, publicada no jornal Le Figaro, foi fulminante: mais de 600 personalidades afirmaram que Depardieu "não representa a França". A essa carta pública, seguiu-se outra, com o título "Adeus ao velho mundo".
"Não, não estamos orgulhosos de Gérard Depardieu", declarou o ex-presidente e antecessor de Macron, François Hollande.
A ministra da Cultura, Rima Abdul Malak, anunciou um trâmite disciplinar que poderia resultar na retirada da Legião de Honra dada a Depardieu, que reagiu, colocando a condecoração "à disposição" da ministra.
Macron afirmou, por sua vez, que Malak se "precipitou" neste assunto e que a justiça deve seguir o seu curso.
Tanto do lado dos defensores de Depardieu quanto dos seus críticos, são muitos os nomes de prestígio: a atriz Catherine Deneuve tomou partido do colega, com quem partilhou a tela em várias produções, assim como Nathalie Baye e Fanny Ardant.
Entre os críticos, jovens cantoras como Angèle, Pomme, e atrizes veteranas como Anne Roumanoff.
Gérard Depardieu é um "predador", acusou, por sua vez, a atriz Sophie Marceau, que já tinha denunciado o comportamento do ator veterano em 2015.
Em entrevista recente dada à Paris Match, acrescentou que “as grandes atrizes”, contemporâneas de Depardieu, não o condenam porque “não as atacou”.
“Ele não atacava as grandes atrizes, ia mais para as assistentes abaixo. [...] Vulgaridade e provocação sempre foram a sua arte”, notou a atriz antes de repetir a história que contou no verão ao diário Le Monde de como o ator a tentou humilhar durante a rodagem de "Polícia" (1985), quando tinha 19 anos, levando-a a decidir nunca mais trabalhar com ele.
Descrevendo a “hipocrisia” da indústria francesa perante um comportamento que já achara "insuportável" na altura, recordou: “Todos riam com ele, todos o amavam por isso, todos o aplaudiam por ser quem era. E toda a gente achou que era normal”.
Mas “muitas pessoas viraram-se contra mim, a tentar fazer parecer que estava a ser um estorvo".
Alguns dos signatários da carta aberta a favor de Depardieu retiraram o seu apoio diante da enorme pressão pública.
E o escândalo provocou outras zangas inesperadas.
As atrizes Lucie Lucas, francesa, e Victoria Abril, espanhola, filmaram juntas entre 2010 e 2018 "Clem", uma série de TV de certo sucesso.
Abril, conhecida na França, foi uma das signatárias da carta em apoio a Depardieu, o que levou Lucas a acusá-la também de um comportamento abusivo durante as filmagens.
A ex-"garota Aldmodóvar" anunciou, a 29 de dezembro, uma queixa por difamação contra Lucas.
"Os meios de comunicação, as redes sociais (...) levam-nos a (ter) comportamentos dignos do velho Oeste", explicou Lucie Lucas na sua conta no Instagram.
"Também me deixei levar e meti-me com a Victoria, algo de que não me sinto orgulhosa", retratou-se.
As anedotas de bastidores nas rodagens ou em produções teatrais com Depardieu proliferaram nos últimos meses, nas quais parece desenhar-se um comportamento abusivo, mas não dirigido às atrizes com as quais partilhava o protagonismo, mas sim às mulheres em segundo plano, mais vulneráveis.
"Sei que Gérard Depardieu não é alguém exemplar, foi durante a rodagem do meu filme, mas não é sempre", admitiu Patrice Leconte, que o dirigiu em 2022 ("Maigret").
O realizador foi um dos que assinaram a carta a favor do lendário ator, e agora diz lamentar tê-lo feito.
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