A lenda do cinema Errol Morris disse que a separação de milhares de crianças migrantes dos seus pais pela administração de Donald Trump nos EUA foi "desumana e cruel", durante a estreia do seu novo documentário que aborda essa política esta quinta-feira no Festival de Cinema de Veneza.

"Precisamos de fronteiras? Precisamos de leis de imigração? Precisamos", disse à France-Press o realizador norte-americano vencedor do Óscar antes da exibição de seu filme "Separated" ["Separados"].

“Mas a ideia é que as leis devem ser justas e humanas. E esta política específica pareceu-me, ainda parece-me, tão desumana, tão cruel quanto mesquinha", notou.

Em 2017, durante o primeiro ano de Trump como presidente dos EUA, a sua administração levantou a ideia de separar as crianças dos seus pais como forma de dissuadir a imigração ilegal – um elemento fundamental da sua campanha.

Lançada oficialmente em abril de 2018, a política de “tolerância zero” permitiu a instauração de processos criminais contra qualquer pessoa que cruzasse ilegalmente a fronteira entre os EUA e o México, resultando na detenção imediata dos pais sem os filhos.

Segundo o documentário, que cita números oficiais do governo, pelo menos 4.227 crianças foram tiradas dos pais – e mais de mil ainda estão separadas.

“O que me horroriza é que não mantiveram registos. Separaram as famílias de tal forma que pode vir a ser impossível reuni-las”, disse Morris, de 76 anos.

O realizador veterano ganhou um Óscar pelo documentário "Testenunhos de Guerra" ("The Fog of War: Eleven Lessons from the Life of Robert S. McNamara"), um relato surpreendentemente franco da Guerra do Vietname por um dos seus arquitetos, o ex-secretário de Defesa dos EUA Robert McNamara.

Ainda uma questão extremamente controversa

"Separated" créditos: Festival de Veneza

O novo filme de Morris - exibido fora de competição em Veneza - é baseado num livro do jornalista norte-americano Jacob Soboroff, que ajudou a expor a situação desesperadora das crianças.

"Ele ligou-me e perguntou se conhecia alguém que estivesse disposto a transformar o seu livro em filme... Ofereci-me", disse Morris.

O documentário baseia-se em grande parte nas declarações de Jonathan White, que na altura era vice-diretor da agência norte-americana para os refugiados (ORR, pela sigla original), que se opôs à política aplicada pelo seu superior, Scott Lloyd, também entrevistado.

Ações judiciais e protestos públicos, mesmo dentro do próprio Partido Republicano de Trump, forçaram a administração, em meados de 2018, a suspender as separações.

Na prática, porém, continuou a separação de famílias ao abrigo de outro regulamento que permitia que pais sem documentação fossem presos e deportados caso tivessem cometido um crime grave.

A imigração continua a ser uma questão extremamente controversa para muitos americanos antes das eleições presidenciais de Novembro, nas quais Trump concorre contra a vice-presidente Kamala Harris.

Um recente relatório oficial dos EUA concluiu que o governo pode ter perdido o registo de até 32 mil crianças imigrantes não acompanhadas nos últimos quatro anos.

Na conferência de imprensa esta quinta-feira, Morris disse que era “essencial” que o documentário fosse divulgado nos EUA antes das eleições, apesar de ainda não ter um distribuidor.

“Nunca se sabe qual será o efeito do que quer que seja, mas quero que isto seja divulgado antes das eleições, na esperança de que possa fazer a diferença”, confirmou.