A percorrer a lista dos 30 filmes a ver antes de chegar aos 30, os realizadores começam a repetir-se. Há um naipe constante de nomes que assinam alguns dos títulos mais sugeridos. E são quatro os filmes de Wes Anderson que lá estão. “Grand Budapest Hotel” é deslumbrante, com um ritmo tão vibrante quanto as suas cores berrantes. Já “The Darjeeling Limited” cede o ritmo à introspecção. Autobiográfico? Lição de vida? É um pouco de tudo isso, embrulhado num bonito pacote como só Wes Anderson sabe fazer. Mas exige esforço e tempo. Vale a pena?
“The Darjeeling Limited” coloca Bill Murray na abertura do filme, a correr para apanhar um comboio que já saiu. De repente, Murray fica pela estação. É ultrapassado por outra figura que também se apressa até conseguir saltar para a última carruagem. É Adrien Brody quem corre, com as suas pernas altas, olhar vago e rosto vazio, deixando Murray para trás, na cena e na história. Esse comboio será o pano de fundo desta história, onde Peter (Brody) se encontra com os irmãos Francis (Owen Wilson) e Jack (Jason Schwartzman). Francis persuadiu os irmãos a juntar-se a ele numa viagem pela Índia, uma reconciliação forçada. Os irmãos perderam contacto ao longo dos anos, afastados pelos erros de qualquer família disfuncional. A morte do pai, pouco antes da viagem, desencadeia o reencontro.
Francis é obsessivo na sua tentativa de recuperar o afecto dos irmãos e não olha a meios para concretizar a viagem (de resto, a sua fortuna facilita esse objectivo). Peter refugia-se no seu silêncio, céptico quanto ao propósito e ao sucesso da viagem e angustiado porque deixou para trás a mulher grávida do seu primeiro filho. Jack paira sobre este drama terreno dos irmãos, ocupando-se da escrita das suas histórias enquanto tenta ultrapassar o desgosto de uma relação que acabou.
O enredo parece pesado mas aí está Wes Anderson para embelezar o panorama. Os planos simétricos são habituais no realizador americano, tal como os momentos em que fixa a câmara num ponto, fazendo desfilar as personagens em frente aos nossos olhos (os três irmãos a percorrer as paisagens, em fila, carregados com as malas pesadas). A forma como Anderson coloca as personagens a interagirem entre si também não é inédita – há quase um discurso comum que é marca do seu cinema. Não é preciso dizer muito sobre as cores fortes e marcantes, organizadas em paletas, uma por cada filme – e aqui os amarelos e laranjas são deslumbrantes.
Desta vez, a banda sonora merece destaque entre o universo de Wes Anderson. Ali estão The Kinks ao lado de The Rolling Stones e ainda Peter Sarstedt, de origem indiana e sucesso britânico do final dos anos 1960. Ali estão também uma interpretação da “Clair de Lune” de Debussy e algumas músicas do mundo do cineasta indiano Satyajit Ray. Os ritmos diferentes coabitam de forma harmoniosa com a viagem de Francis, Peter e Jack. Na verdade, são aquelas três personagens que parecem mais fora do seu elemento.
Adrien Brody é demasiado alto para os compartimentos apertados que cabem no ecrã. A sua personagem compra uma cobra, que escapa a bordo do comboio e é venenosa – para alarme dos locais. Owen Wilson sufoca-nos com as suas tentativas vãs de controlar o incontrolável. E Jason Schwartzman, que é baixo ao lado dos seus dois irmãos, consulta repetidamente o atendedor automático da ex-namorada para descobrir que mensagens ela poderá ter recebido.
No subtexto desta história, há metáforas que nos falam ao subconsciente. Os irmãos carregam as malas com os bens do pai falecido. Carregam, literalmente, a bagagem de uma família disfuncional ou, pelo menos, de uma infância pesarosa.
A personagem de Owen Wilson apresenta-se de ligaduras e pensos na cabeça e na cara, por ter sofrido um acidente. A cura física, que demora praticamente todo o filme, é a mesma purga espiritual que pretende alcançar com aquela viagem.
Os irmãos partilham, a dado momento, analgésicos de origem (suspeita) indiana. Cada um da sua forma, todos estão a tentar lidar com outro tipo de dor, menos físico, provocado pela morte do pai e pela distância que os caminhos sinuosos da vida impôs naquela família.
Contra as probabilidades, acontece que o comboio se perde, o que parece impossível dado que um comboio só tem de seguir os carris. Mas não achamos, por vezes, que há estruturas inabaláveis, que nos apanham desprevenidos quando desabam em ruínas à nossa frente?
Essa cegueira está também com a personagem de Adrien Brody. Enquanto Francis carrega uma culpa imensa sobre a forma como poderá ter condicionado a relação dos irmãos com os pais (e tenta reconciliar-se com esse passado durante a viagem), Peter apropria-se dos bens deixados pelo pai. Acaba a usar uns óculos de lentes muito grossas, que claramente não o ajudam a ver mas criam, sim, uma barreira para o mundo. É como uma tentativa de evitar a realidade.
Uma história verdadeira, entre imprevistos e cores fortes
É já no final da viagem que os três irmãos encontram a mãe. Só que, em vez de uma presença acolhedora, em vez do colo materno, encontram uma personagem atmosférica que prefere a distância à presença dos filhos, eles que foram procurá-la àquele fim do mundo. É a mesma mãe que lhes diz que parem de sentir pena de si mesmos e não deve ter havido mais que os tenha ocupado durante aquela jornada do que a autocomiseração, distraída pelas cores vibrantes da Índia e as vidas que deixaram em casa.
Vale a pena investir tempo neste filme? A beleza poética destes momentos é suficiente para que valha a pena. Mesmo quando eles não nos prendem logo o olhar e pedem uma segunda visualização. Saber que Wes Anderson (que contou aqui com a ajuda de Roman Coppola na escrita) se dedicou tanto a construir cada uma das indicações que inscreveu no guião é ter a certeza de que há uma dedicatória de amor intensa à sua arte e à pessoa que a vai ver. Que uma não é nada sem a outra.
Por isso, sim, vale a pena. Mais do que as simetrias perfeitas dos enquadramentos de Wes Anderson e mais do a paleta colorida que nos faz sentir os cheiros da Índia, ali estão personagens ricas que nos querem dizer qualquer coisa.
Wes Anderson, com os seus fatos impecavelmente engomados, podia ser uma destas personagens. Como argumentista e depois como realizador, vê-se o seu gosto climático por criar personagens que são tão autoexplicativas (os trejeitos, as roupas, os acessórios, as hesitações, os discursos...) quanto complexas. Não é difícil pensar o quanto de autobiográfico terá esta história. O argumentista parece ser exímio a mergulhar uma mão muito meticulosa no grande lago das suas memórias, escolhendo minuciosamente um traço ou um episódio.
Por detrás das cores vivas, dos momentos cómicos sinceros, das histórias rocambolescas e do sem fim de pormenores com que ele enriquece cada cena, Wes Anderson pinta algo de muito verdadeiro. Não surpreende, por isso, que o crítico Philip French tenha descrito, no Guardian, em 2007, o quanto se identificou com este filme, já que também ele se tinha reencontrado com o seu irmão (15 anos depois) num percurso de carro pela Nova Zelândia. Longe de casa, French conta como ultrapassaram as agruras da infância.
É certo que a viagem dos três irmãos não corre como planeado e são muitos os incidentes que exigem o constante reajustamento de expectativas e planos. Wes Anderson coloca cirurgicamente esses momentos de pressão acrescida no olhar do espectador. Vemos aquelas personagens fazerem o tal caminho espiritual – ora cada um por si, na sua passada, ora num ritmo conjunto – e saírem, do outro lado, com as feridas mais cuidadas, senão curadas. Vemo-los, realmente, apertados em cima de uma mota precária, como se estivessem a dar um abraço forte de reconciliação.
Nada corre como se espera, mas chegam ao ponto onde se reencontram e voltam a conhecer. É propositado que assim seja. Se até um comboio se pode perder do seu percurso, que certezas temos na vida?
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