Aurora e Ventura viveram um amor proibido, manchado de sangue, que lhes atormenta as memórias da velhice. “Tabu” tem África como pano de fundo – e isso já diz muito deste filme. E tem como vilão desta história as tiranias abstratas que povoam o imaginário português. “Tabu” assegurou a Miguel Gomes um lugar entre os cineastas dos nossos dias.

“Um crocodilo triste, melancólico, acompanhado por uma dama de outros tempos. Inseparável par que um misterioso pacto uniu e que a morte não pôde quebrar.”
Pilar (Teresa Madruga) assiste, no cinema, à história de um desaire amoroso que termina em morte, perante um crocodilo, um crocodilo triste e melancólico. As notas logo no início de “Tabu” (2012) dão pistas para o que há de vir: será um filme que explora o passado – e olhar para trás é sempre um exercício algo melancólico– e mergulha nas agruras da vida – as tristezas que cicatrizam na memória.

Pilar é vizinha de Aurora (Laura Soveral), uma idosa que trocou o mundo real pelo dos seus pensamentos e que julga estar sob o domínio da empregada africana, Santa (Isabel Cardoso). A idosa pede ajuda a Pilar para que, por ser bondosa, a liberte do cativeiro forçado por crenças pagãs. Pilar está, assim, no centro da primeira parte da história, a que o realizador chamou “Paraíso perdido”.

As personagens que habitam o universo de Pilar repetem que é tão boa pessoa e parecem ter essa única função na narrativa. Fica por completar a história da estudante polaca que devia ficar alojada em casa de Pilar, mas que acaba por não chegar. Santa diz-lhe que Aurora morrerá em breve e que tem de cumprir o último desejo “da senhora”: encontrar o senhor Ventura (Henrique Espírito Santo).

Tabu

A modernidade de “Paraíso perdido” dá lugar à melancolia da segunda parte do filme. Chama-se simplesmente “Paraíso” e entramos nela numa curiosa cena. O senhor Ventura já não chega a despedir-se de Aurora em vida mas, antes de o devolver ao lar, Pilar propõe que bebam um café. Os três entram numa espécie de centro comercial ao ar livre, decorado com uma vasta vegetação e até um pássaro. E é como se as três personagens entrassem metaforicamente na selva africana onde se passa o segundo ato.

Ventura diz então, como quem espera há várias décadas a oportunidade para expiar a sua consciência: “ela tinha uma fazenda em África”. África, como continente, surge logo no imaginário português, porque é não só uma personagem sobejamente conhecida do nosso cinema como uma peça na identidade coletiva dos portugueses. É um cenário tão familiar que prescinde da referência geográfica mais fina. Estamos em África e sabemos que Miguel Gomes nos vai levar para o colonialismo, pré-Revolução.

“Ela tinha uma fazenda em África”

O senhor Ventura começa a desfiar a história de Aurora, com quem se cruza pouco depois de ali chegar, perto do monte Tabu, num dia em que ela procurava o crocodilo que o marido (Ivo Müller) lhe dera. A história é um romance, claro. O crocodilo, que aparecia no início do filme como personagem fictícia, é aqui bem real e arrasta-se pela história como uma testemunha eterna do que ali se passará. É que, num dos seus delírios de velhice, Aurora confessa a Pilar ter as mãos manchadas de sangue. Mário (Manuel Mesquita) tentava impedir a fuga da jovem Aurora (Ana Moreira), grávida do marido, com Gian Luca Ventura (Carloto Cotta, protagonista do recente “Diamantino”, de Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt). Aurora dispara uma arma sobre Mário, amigo de Gian Luca e do seu marido.

Miguel Gomes, realizador do filme

Entre o início do romance e o desfecho terrível, África revela-se ante os nossos olhos. Miguel Gomes toma a decisão de silenciar os diálogos no “Paraíso”. Em vez disso, narra (com a sua própria voz, enquanto senhor Ventura) tudo o que ali acontece, desde as conversas das personagens – que falam como num filme mudo – até às decisões omissas. É a memória de Ventura que ali está relatada, não a realidade dos factos. Ouvimos a melancolia do que a sua memória reteve, a recordar os encontros secretos, as cartas trocadas com Aurora, a cegueira da paixão a contrastar com o tumulto social em gestação...

África está presente com a sua carga afetiva, sim, mas o seu peso histórico e político não se desvaneceram no romance. Por exemplo, a velha Aurora continua a evocar o domínio colonial na relação com a criada negra. “Tabu” tem laivos de domínio colonial moderno. Miguel Gomes contou que o filme foi feito, no cenário africano, quase dia-a-dia. Sem dinheiro, era difícil assegurar o passo seguinte da produção. Por isso, criou-se uma equipa: o realizador, Mariana Ricardo, Telmo Churro e Bruno Lourenço. Tinham como missão escrever opções de cena para dar continuidade à história, decidindo o rumo do filme no local, e intitularam-se Comité Central (assim está nos créditos). Sim, como uma resistência.

É que a crise financeira tinha acabado de estalar e a chegada da Troika a Portugal impôs constrangimentos financeiros. De forma inadvertida ou intencional, aquele colonialismo moderno inscreveu-se no subtexto de “Tabu”, como os fantasmas contemporâneos pairam sobre nós. Há a tirania da solidão (a da velha Aurora e a de Pilar), a tirania financeira (viciada no jogo, Aurora perde tudo o que lhe restava) e a tirania dos limites do corpo (a memória a ceder ao passado). Há, no fundo, uma tirania mais forte do que tudo o resto: a das convenções sociais, que ditam que a jovem Aurora regresse ao marido e que impossibilitam o romance com Gian Luca.

Esta ideia de tirania não está só em “Tabu” – filme que manteve Miguel Gomes no holofotes internacionais, depois de “Aquele Querido Mês de Agosto” (2008). Tornou-se uma marca do realizador português, que conseguiu através dele os meios financeiros para o projeto seguinte (tirania financeira a ditar a existência da arte…). É esse espírito de colonialismo que Miguel Gomes leva à exaustão na trilogia “As Mil e Uma Noites” (2015).

Tabu

Diz-se que “Tabu” faz uma homenagem ao cinema e Miguel Gomes não hesita em falar dos seus mestres. Certo é que este filme respira aquela coisa muito portuguesa que é remoer o passado. Outra vez África, como nos chegará uma vez mais em “Cartas da Guerra” (2016), de Ivo Ferreira, também este filme rendendo-se ao preto e branco como metáfora da memória. Outra vez as crises, como veremos em “São Jorge” (2016), de Marco Martins.

Miguel Gomes tem esta veia do cinema português quase monotemático. Distingue-se, pelo menos, uma linguagem muito própria, que não teme contaminar a ficção com planos da equipa técnica a segurar microfones. O trabalho de som de “Tabu” e a decisão de ter Ventura a narrar a segunda parte do filme fazem deste filme um relato tanto mais verdadeiro e uma experiência emocional mais forte.

Merecidamente, “Tabu” encantou a crítica, venceu galardões vários e conseguiu ser eleito, por críticos ouvidos pela BBC, em 2016, como um dos 100 melhores filmes do século XXI.

Veja mais no blog de Filipa Moreno

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