A cineasta equatoriana Ana Cristina Barragán apresentou no Festival de Veneza o seu mais recente filme, 'Hiedra', onde aborda as feridas da infância e as suas consequências, contando a história de uma jovem que procura o seu filho, que abandonou quando era bebé.

É a primeira vez em 26 anos que o Equador apresenta uma longa-metragem no festival, desde a estreia em 1999 de "Ratas, ratones, rateros", de Sebastián Cordero.

"Isso é muito especial e muito importante para a cultura do Equador", disse Barragán à agência France-Presse (AFP) no Lido, onde decorre o festival, acrescentando sentir-se "muito grata" por poder apresentar "Hiedra" no Festival, "porque isso significa continuar a criar, abrir mais portas".

O filme compete na secção Horizontes, dedicada a novas tendências.

Ana Cristina Barragán a 23 de setembro de 2022 no Festival de San Sebastian

A longa-metragem relata o encontro entre Azucena e Julio, dois jovens que carregam uma ferida de infância. Ela, porque teve que abandonar o filho quando era adolescente, e ele, que cresceu num abrigo e nunca conheceu os seus pais biológicos.

"O abandono é uma coisa que sempre esteve no meu trabalho", explicou a realizadora, que disse que queria criar personagens que "pudessem explorar também a ternura".

Para o elenco, como já fez em trabalhos anteriores como "Alba" ou "La Piel Pulpo", procurou "atores naturais". Neste caso, a grande maioria do elenco era composta por adolescentes, cujo trabalho oferece "algo muito hipnótico".

A equipe de Barragán realizou "1.500 castings" em distintos lugares. Deily Ordóñez, que interpreta uma das residentes do abrigo onde vive Julio, foi escalada na instituição onde rodaram o filme porque morava lá.

"Um dos psicólogos contou-nos que Deily, a vida toda, quis ser atriz, era o seu sonho", disse Barragán.

"Fui uma das primeiras que se inscreveram para o casting", comentou a jovem de 21 anos. "O que é contado no filme é quase a experiência que vivi, porque nos abrigos chegam muitas crianças de diferentes situações, seja abandono, abuso... o filme aproxima-me muito do que vivi", notou.

"Hiedra" é protagonizada pela atriz mexicana Simone Bucio e por Francis Eddú Llumiquinga, que Barragán conheceu no 'Centro del Muchacho Trabajador', um estabelecimento de Quito fundado por jesuítas que oferece programas sociais para jovens e as suas famílias.

"Eddú tem algo que quase ninguém tinha: ele é um miúdo extremamente inteligente, mas também muito sensível", disse a realizadora de 38 anos.

Para a personagem de Azucena, Barragán afirma que ficou claro que deveria ser interpretada pela mexicana Simone Bucio desde que a viu em "A Região Selvagem", um filme de Amat Escalante de 2016.

"Azucena é uma mistura de coisas: de raiva, por causa do seu trauma, e [também] é desajeitada, não é uma pessoa de palavras e comunicação, não tem ferramentas emocionais", explicou a atriz mexicana.

Segundo Barragán, a mexicana "deu algo especial" a Azucena.

"Nem sequer senti a diferença no filme, ela é mexicana e não se sentia tanta diferença nem no sotaque, nem na idade" em relação aos outros atores, afirmou.

Além de explorar o abandono, a solidão, e relações entre pais e filhos, "Hiedra" é um reflexo da sociedade equatoriana atual, marcada pelo racismo e pelas relações de dominação.

"O racismo é muito forte no Equador, um dos seus principais problemas", afirmou a realizadora, e isso "permeia o filme: a diferença de poder e privilégios".

Sem perder o sorriso, a natural de Quito reconheceu que trabalhar com jovens tão novos "foi um grande desafio", que superou com exercícios de representação e improvisação: "um trabalho colaborativo".

"Dizia-lhes: 'Vamos falar disto', e eles contribuíam muito para os diálogos, muitos diálogos e piadas são criados por eles", contou. "Obviamente, são adolescentes, alguns gostavam uns dos outros e houve conflitos... mas, na verdade, foi bonito, criou-se um laço muito forte entre eles e também comigo".