Quando Christian Bale aparece no ecrã, a descrever-nos toda a sua rotina matinal, faz uma máscara facial de menta (sim, os detalhes são tudo para o protagonista de “Psicopata Americano”). Ouvimos um piano enquanto Bale começa a remover a máscara e a música relaxante dá lugar a uma de tom ameaçador. Mas rapidamente ouvimos “Walking On Sunshine”, quando Bale sai do seu apartamento branco e iluminado para as ruas de Nova Iorque.

Ali está Patrick Bateman a resumir-nos de imediato – por imagens – aquilo que vai concluir num monólogo intenso no final de “Psicopata Americano” (2000), de Mary Harron: existem duas versões de si mesmo. Uma é o estereótipo dos homens bem sucedidos de Wall Street, anos 1980. Trajam com bons fatos, cuidam dos seus corpos, frequentam os restaurantes do momento, estão comprometidos com mulheres de famílias importantes, têm futuros promissores à sua frente. Christian Bale, com uma pele bronzeada e um corpo escultural, passeia-se por este estilo de vida, invejando todos aqueles que conseguem ter (ou ser) mais do que ele.

A inveja é o traço da personalidade que liga o homem de Wall Street à segunda faceta de Bateman. Durante o dia, ambiciona ser mais e melhor do que os colegas que o rodeiam. De noite, essa inveja apodera-se da sua mente e torna-se obsessiva. Mas não existe sozinha na mente de Bateman. Psicótico e perverso, Bateman é um assassino em série. Mata as mulheres que leva para o seu apartamento, mata os colegas do seu círculo de influência que o irritam e, quando pensa estar perto de ser apanhado, mata todos os que se cruzam no seu caminho.

Este enredo seria suficiente para atirar “Psicopata Americano” para a prateleira do terror, não fosse o tom cómico impregnado no guião, inspirado no livro de Bret Easton Ellis, e que Christian Bale executa com total mestria. Num tom altamente teatral (sem parecer falso), Bale descreve a Jared Leto o percurso de Huey Lewis and The News. Estão na casa de Paul Allen (Jared Leto), bêbado. Ao som de “Hip To Be Square”, Bateman discorre o seu monólogo musical enquanto veste uma gabardine transparente sobre o seu fato e vai buscar um machado. É então que mata Paul Allen, com a mesma violência que encontramos na cena em que atira uma motosserra para cima da prostituta que está a fugir da sua casa.

Só faltava uma boa fala no guião para que o momento em que Bateman chama Paul e desfere sobre ele o machado chegasse ao nível de um “here’s Johnny”.

Julgamos conhecer Patrick Bateman a este ponto. Já o vimos ter um surto psicótico depois de comparar cartões de visita com os dos seus colegas, para apurar qual o mais elegante. Nessa altura, demos o benefício da dúvida a Bateman e julgámos que pedira para ver o cartão de Paul Allen para memorizar o contacto dele. Mas não. Bateman queria mesmo comprar o tom de branco e o tipo de letra usados no cartão com aqueles que escolhera para si. A comicidade da cena está no facto de todos os cartões que surgem sobre a mesa serem praticamente iguais, mas aqueles executivos – de cabelo puxado atrás, com relógios caros e fatos impecáveis – falam das subtilezas que tornam os seus cartões melhores do que os restantes.

E agora que já sabemos dos problemas mentais de Bateman – que a realizadora Mary Harron faz questão de nos mostrar com várias cenas em que o protagonista toma medicação – somos confrontados com a dúvida. É que este suposto vilão começa a sofrer de problemas de consciência, lúcido o suficiente para saber que está a entrar numa perversão sem retorno. Ele diz-nos (diz ao advogado) que matou todas aquelas pessoas. Mas o advogado não acredita e julga tratar-se de uma piada, ele que até jantou com Paul Allen em Londres naquela altura…

Como todos os filmes que querem iludir o espectador, também “Psicopata Americano” tem direito a várias teorias. Enquanto uma diz que todas aquelas mortes acontecem só na cabeça de Bateman, outra explora a possibilidade de serem reais, até porque aqueles homens são muito parecidos e acontece várias vezes que julgam encontrar-se com alguém que não é. O próprio Paul Allen fala com Patrick Bateman como se fosse outra pessoa.

American Psycho (2000)

Esta segunda tese parece-nos ter mais força durante o filme. Mas as dúvidas crescem graças a cenas como aquela em que Bateman chega à casa onde deixou corpos pendurados num armário mas não os encontra, encontra antes uma agente imobiliária a tentar vender o apartamento.

Mary Harron não queria que o filme fosse entendido como uma ilusão do protagonista, mas quis explorar a ambiguidade que diz ter encontrado no romance original. De resto, “Psicopata Americano” foi um livro recebido com críticas, em parte pela conteúdo de violência contra mulheres e também pela caracterização social daqueles grupos poderosos que habitavam Wall Street. No fundo, satiriza-se um estilo de vida, em tom cómico, para mostrar que há muito que se passa quando a agitação da cidade dá lugar à noite, longe dos olhares atentos do social.

Fruto da imaginação de Bateman ou produto de uma realidade distorcida, só temos a certeza de que este filme nos transporta desde o primeiro frame para dentro da cabeça do protagonista e até acabamos a reconhecer alguma simpatia por ele. É que a redenção faz parte da sua personalidade, quando diz precisamente que a confissão dos seus crimes não serviu de nada. Também Christian Bale diz que Bateman “não é um Hannibal Lecter típico”, porque nos rimos dele. “É ridículo”, disse o ator em entrevista.

“Quero pertencer”, diz Bateman, enquanto ouve Robert Palmer nos auscultadores e (a banda sonora deste filme é um retrato rico dos anos 1980, de Talking Heads a Phil Collins). O seu desespero chega a ser emocionante e é incrível como Christian Bale consegue tocar, em poucas cenas, emoções tão distantes, indo da teatralidade da fachada como homem de negócios à loucura de um assassino em série.

Mary Harron toma algumas opções que ajudam a construir esta personagem, como os planos que apanham Bateman com apenas um lado da cara iluminado e o outro na escuridão. Mas “Psicopata Americano” não é um filme de técnica extraordinária. É um filme com cenas marcantes, mais um no percurso de um ator que se fez grande pela entrega (física e mental) a cada personagem.

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