"Quase tudo o que é feito hoje [em televisão] me aborrece, porque geralmente decorre no mundo contemporâneo. A criança dentro de mim estava muito entusiasmada com o conceito de um navio de piratas e guarda-roupa dessa época", conta Taika Waititi ao SAPO Mag, numa entrevista por Zoom, ao recordar como se viu envolvido numa história em alto mar ambientada no século XVIII.
Em "Our Flag Means Death", o realizador de filmes como "O que Fazemos nas Sombras" (2014), "Thor: Ragnarok" (2017) e "Jojo Rabbit" (2019) regressa ao papel de ator regular de uma série após breves presenças em várias produções nos últimos anos. "A ideia de participar como ator numa espécie de Mad Max em alto mar é muito apelativo", confessa. "Lembrei-me de como é divertido ser ator, construir uma personagem. Quero fazer mais disso", garante o neozelandês, que encarna o pirata Blackbeard na saga que se estreia em data a anunciar na plataforma HBO Max, lançada a 8 de março em Portugal.
A personagem, inspirada numa figura real, é uma das principais da história que traz "um olhar menos glamouroso dos piratas". "Na saga 'Piratas das Caraíbas', toda a gente é bonita. Toda a gente é elegante e parece que acabou de sair do banho", compara.
"Our Flag Means Death", no entanto, propõe algo completamente diferente a longo de uma primeira temporada de dez episódios. O norte-americano David Jenkins, o criador, descreve-a como "um guisado de ideias e culturas diferentes". "Tudo o que não costumamos ver numa história de piratas foi o que me interessou aqui", explica. "Gosto da ideia de uma série sobre o dia a dia laboral ambientada numa história de piratas. Ver como é só mais uma terça-feira num navio pirata. É um trabalho: tens de matar pessoas, mas alguém tem de limpar o sangue, tratar das armas, pescar", exemplifica.
Mudar de vida
Este mergulho nos bastidores do quotidiano de um navio pirata surge em paralelo à viagem iniciática do protagonista nesse mundo. Stede Bonnet, que tal como Blackbeard foi uma figura que existiu realmente, abandona a aristocracia para experimentar uma nova vida.
"Uma crise de meia-idade com piratas pareceu-me uma forma fantástica de entrar num género que nem me interessava muito", assinala o criador, que já pisou o universo da comédia na sua série anterior, "People of Earth" (2016), da TBS, saga de ficção científica centrada em pessoas abduzidas por extraterrestres.
"Estava interessado em ler sobre o Steve, porque me tinham falado dele", recorda, embora assuma que a pesquisa não foi uma preocupação. "Quis saber algumas coisas que fez, como começou, mas foi bom poder inventar".
O protagonista "é um sonhador romântico que tenta fugir de uma vida à qual julga não se adaptar e procura um desafio", avança o neozelandês Rhys Darby, que encarna a personagem. "Veio da nobreza e correu um risco ridículo durante uma crise de meia-idade para construir um navio pirata, contratar pessoal e pagar-lhe, criar uma biblioteca a bordo, e levar fatos caros para aquilo que ele pensava que iria ser um sonho. Mas a crueza da realidade atinge-o de imediato, claro".
Disrupção, magia e química
"Há um grande fascínio pelos fora da lei, por viver um tipo de vida que não temos numa cultura normal", sublinha David Jenkins. E entre a rotina e o desejo de evasão, que desemboca numa nova rotina, desenha-se o mundo de "uma história pessoal sobre como é que este tipo fez isto e como é que poderá alguma vez sobreviver", acrescenta Rhys Darby.
"É disruptiva face aos conceitos de piratas. Quem a for ver à espera desse imaginário, vai ficar desiludido", alerta o ator. "A minha personagem, em particular, é uma disrupção total face a esse mundo. E quando encontramos outras que parecem ser desse mundo, descobrimos que afinal também não são, ou pelo menos não querem ser. E é aí que a série se torna verdadeiramente mágica".
Essa magia também deve muito à dinâmica entre Steve e Blackbeard, realça. "A diversão começa quando mergulhamos a fundo na psicologia destes dois tipos. Porque é que estão lá? E aí entra uma vertente mais dramática, quase tão divertida de interpretar como a cómica".
O facto de a dupla ser interpretada por dois atores cúmplices há muito tempo ajudou. "Tenho tido pequenos papéis em muitos grandes projetos, a maioria do Taika", diz Darby. "Mas nunca tinha sido uma personagem principal. Julgo que já estava na altura de assumir essa responsabilidade. E ter o Taika e o David a apoiar-me e a garantir que era suficientemente bom fez com que se tornasse confortável. É um grande passo na minha carreira".
"Precisamos de desligar"
Embora o conceito de David Jenkins para a série tenha sido imediatamente abraçado por Waititi, o registo cómico (e às vezes dramático) a adotar foi o maior desafio, refere o criador. "O equilíbrio do tom é a parte mais difícil da criação de uma série. Esta às vezes é quase um cartoon, noutros momentos é muito realista e naturalista... E depois há atores muito diferentes, uns dramáticos outros cómicos, todos na mesma série, e temos de assegurar que estão todos no mesmo comprimento de onda".
Além de Darby e Waititi, "Our Flag Means Death" junta Kristian Nairn, Rory Kinnear, Con O'Neill, Ewen Bremner ou Matthew Maher e tem participações especiais de Leslie Jones, Kristen Schaal ou Nick Kroll. O autor de "Jojo Rabbit" também dirigiu o primeiro episódio, passando o testemunho ao espanhol Nacho Vigalondo em alguns dos seguintes - realizador igualmente familiarizado com comédia desregrada em filmes de culto como "Timecrimes" (2007) ou "Colossal" (2016).
Jenkins diz não encontrar grandes paralelos entre o resultado dessa amálgama e outras apostas do pequeno ecrã dos últimos anos. "Não há assim tantas séries norte-americanas cómicas hoje em dia. O que é estranho, porque precisamos muito delas, precisamos de desligar", defende. "É uma série escapista de uma forma que poucas são atualmente. Posso ver durante meia-hora, rir, sentir algumas coisas, achar que foi agradável e querer ver mais".
Já Waititi considera que conseguiu "explorar o que a vida dos piratas realmente teria sido, com muitos tempos de espera e períodos de aborrecimento". Mesmo que nem sempre tenha sido agradável. "Não gostei do meu fato", admite. "Era tão apertado, quente e desconfortável, todo de couro. Irritou-me o tempo todo. Mas isso foi bom para a personagem, porque a personagem tinha de estar irritada. Estava tão aborrecida e tão farta de ser pirata, e eu estava farto de ter aquele fato vestido".
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