Daniel Guerrero saiu finalmente da prisão, ao fim de vários anos. Volta a casa, num bairro pouco reputado de Madrid, e quer vingança. "A minha personagem esteve ausente muito tempo e quando regressa tenta recuperar aquilo que acha que é seu por direito", explica Isak Férriz, que interpreta o mais velho dos três irmãos protagonistas de "Gigantes", em entrevista telefónica ao SAPO Mag.
Mas os interesses de Daniel vão entrar em conflito direto com os de outras personagens da série espanhola, estando entre os principais rastilhos da escalada de violência que se vai disseminando nesta aposta original do canal Movistar.
Estreada em 2018 no país vizinho, a saga familiar vincada pelo narcotráfico arranca com o retrato de um pai tirano, Abraham Guerrero (José Coronado), e dos seus três filhos, partindo na infância destes mas acompanhando-os sobretudo na idade adulta.
"É uma história criminal sobre o controlo da entrada da droga em Madrid desde os anos 1980 aos 2000. É a história do patriarca de uma família, um homem que veio do nada e construiu um império. E a história fratricida dos três filhos que lutam entre si para o controlar", descreve Isak Férriz.
Quando a droga é só um pretexto
A saga de luta pelo poder desenvolve-se em duas temporadas, de seis episódios cada, com a primeira a chegar ao AMC depois de ter estreado na televisão portuguesa há poucos meses, na RTP2. Mas não deverá haver uma terceira época a caminho. "Inicialmente seria só uma temporada de oito capítulos, acabou por se adaptar o formato a duas, mas esta história só poderia terminar desta maneira. Surgiram outras vias, mas não eram tão apropriadas. Este é o final mais fiel a esta história, e muito honesto face ao modo como foi desenvolvida", garante o ator andorrano.
Essa concisão, conta Férriz, é dos elementos que mais lhe agradaram numa história
que procura não ser só mais um relato dos submundo do narcotráfico, tema caro a muita ficção televisiva recente (de "Narcos" a "Gomorra", passando por "ZeroZeroZero" ou "Ozark", exemplos não faltam).
"A droga nesta série é um elemento meramente decorativo, uma desculpa. Não é esse o tema em si. A história poderia ser sobre três irmãos que têm uma empresa de construção. O importante é a forma como este pai educa os filhos e as consequências que esse processo vem a ter. É uma luta de irmãos. E também sobre a masculinidade tóxica e a forma como se articula com o poder, e como se alimenta a si própria, numa espiral de loucura. E isso tem muito que ver com algumas realidades espanholas", assinala.
Essa singularidade deve-se, aponta, à visão de Enrique Urbizu, um dos criadores da série e o realizador da maioria dos episódios, juntamente com Jorge Dorado ("Mindscape", 2013). "Era um realizador que admirava muito. E depois de o conhecer, ainda passei a admirá-lo mais", diz. "É um realizador muito popular em Espanha, um grande conhecedor e arqueólogo do cinema, e sabe transmitir essa sabedoria e paixão. E trata o espectador com inteligência, não insiste em oferecer-lhe todos os detalhes para acompanhar a história, dá-lhe espaço para ir descobrindo as personagens e as tramas", salienta.
Não há descanso para os ímpios
Apesar de a obra de Urbizu ter sido pouco divulgada em Portugal, o espanhol tem mantido, desde finais dos anos 1980, uma filmografia dominada sobretudo pelo thriller e film noir (em 2011, ganhou o Goya de Melhor Realizador com "No habrá paz para los malvados"). E isso ajuda a explicar o à vontade com que "Gigantes" percorre esses territórios, doseando tensão dramática, sequências de suspense e alguns confrontos físicos. Férriz protagoniza, de resto, um dos combates mais memoráveis da primeira temporada, contra um dos irmãos.
"A minha primeira cena foi a de uma luta com o Clemente, e foi um processo bastante duro, muito articulado com o realizador e com um especialista de coreografias. Foi complicado porque o Clemente é um pugilista e o Daniel é só um arruaceiro [risos]. Obrigou a muitas repetições da mesma cena e a um grande esforço físico. Mas foram cenas muito divertidas de filmar, embora muito duras, até porque estava muito calor nessa altura, foi em pleno verão. E depois também havia a ideia de não esconder a violência nesta série. Não a tornando violência gratuita, mas consequente, de mostrar ao espectador o que as personagens são capazes de fazer para atingirem os seus objetivos", sublinha.
Tal pai, tal filho
Além dos desafios físicos, Férriz recorda ao SAPO Mag como abordou as motivações e personalidade de Daniel, figura que não pede a simpatia do espectador mas que será, no entanto, das mais magnéticas e carismáticas da saga. "A minha personagem esteve ausente muito tempo e quando regressa tenta recuperar aquilo que acha que é seu por direito. É uma fotocópia do pai, com toda a opulência, maldade e crueldade com que educou os filhos. E o maior desafio foi conseguir replicar a atitude do Abraham Guerrero e levá-la a um nível 2.0.. Ao mesmo tempo, e à medida que fomos filmando mais cenas, fui-lhe acrescentando doses de humor negro, que derivam sobretudo da sua inconsciência", recorda.
Da jornada de Daniel, cruzada com a de Tomás (Daniel Grao) e Clemente (Carlos Librado "Nene"), e as das suas mulheres e antagonistas, resulta um "grande entretenimento, visualmente arrasador", avança Férriz. "E é muito original: quem espera mais uma trama sobre narcotráfico encontra uma tragédia familiar sem limites, sobretudo na segunda temporada, seja na escrita, nas interpretações, em todos os aspetos", acrescenta, elogiando um período no qual "há uma grande liberdade criativa" na ficção televisiva. "Muitas dessas séries são de autor, e de muitos autores vindos do cinema podem explorar o seu universo sem restrições", observa. "Gigantes" é um desses casos e traz novos mundos e tons à ficção televisiva espanhola depois da popularidade recente de "La Casa de Papel", "Elite" ou "Top Boy". E embora seja bem distinta dessas, também não lhe faltam ingredientes para agarrar o espectador.
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