"Allen v. Farrow", a série documental em quatro episódios sobre o escândalo Woody Allen, estreia no dia 22 na HBO Portugal.

O trabalho de Kirby Dick e Amy Ziering (com a produtora Amy Herdy) recorre a material inédito e de arquivo para abordar a acusação de abuso sexual de Dylan Farrow, filha adotiva de Mia Farrow, contra o realizador, em 1992, quando tinha sete anos, que este sempre negou.

As autoridades médicas e judiciais não encontraram indícios para avançar com acusações em 1993.

O documentário promete revelar vídeos e cassetes de áudio inéditos, filmes caseiros, documentos judiciais, investigações da polícia, bem como entrevistas detalhadas com Mia Farrow, Dylan Farrow e o seu irmão Ronan Farrow (jornalista que foi decisivo para a revelação dos casos de abusos sexuais contra o produtor Harvey Weinstein), amigos da família, o procurador Fran Meco, especialistas, investigadores e testemunhas, algumas das quais a falar publicamente pela primeira vez.

Prometido está também uma análise da carreira de Woody Allen vista de um "contexto mais amplo e refletindo sobre como as revelações públicas sobre a vida pessoal dos artistas podem levar a reavaliações do seu trabalho".

Segundo um artigo do The Hollywood Reporter (THR), entre as revelações mais "bombásticas" estão a alegação de que Allen e Soon-Yi Previn mantinham uma relação sexual quando ela ainda estava no liceu.

No mesmo artigo no THR, Amy Ziering é clara sobre o ponto de vista ativista de "Allen v. Farrow": "Na verdade é um espelho da nossa sociedade em geral. A forma como estes crimes ficam impunes e todos as razões para isso acontecer, a forma como todos nós somos inconsciente e intencionalmente cúmplices em algum grau. A personalidade de Woody desarmou-nos a todos. Temos esta cultura de celebridade e isso dá-lhes esse escudo de impunidade. Impregnamos neles uma certa confiança e amor e depois não conseguimos acreditar ou ouvir a dissonância cognitiva. Damos cobertura aos seus crimes."

Mesmo antes da estreia do primeiro episódio, há quem aposte que esta será a peça final para a demolição da reputação e carreira do realizador, mesmo junto daqueles que defendem a sua inocência, que já viu a sua imagem deteriorar-se, principalmente nos EUA, quando Dylan renovou as acusações no início de 2018, após o movimento #MeToo, e se mostrou conformado por "um grande número de pessoas vai pensar que fui um predador" para o resto da sua vida.

Mas após a HBO comprar discretamente o documentário no verão do ano passado, as imagens do trailer e a sinopse oficial (reproduzida atrás neste artigo) lançados de surpresa apenas no passado dia 5 também geraram acusações de apenas ser abordada a posição do clã Farrow.

Um trabalho que apela mais à emoção do que à razão

Manhattan

A crítica a "Allen v. Farrow" também já publicada pelo THR não destaca qualquer revelação decisiva e nota que o caso contra Allen se apoia em "formas mais persuasivas emocionalmente do que intelectualmente".

A publicação reconhece que ver o relato de Dylan apoiado pelos documentos é "angustiante", mas acrescenta que "existe uma diferença entre criticar a sobrevivente e criticar o projeto construído em torno dela - o que é importante notar, porque Kirby Dick e Amy Ziering fizeram escolhas que nem sempre funcionam e construíram argumentos que não são tão convincentes quanto as próprias palavras de Dylan".

Para desconstruir alguns dos argumentos habituais dos defensores de Allen, o documentário recorre a especialistas que desacreditam o relatório médico sobre Dylan que concluiu pela inexistência de abusos, e dão contexto à decisão do procurador Frank Maco de não avançar com acusações apesar de achar que existia "causa provável": a de não querer sujeitar Dylan a ter de testemunhar em tribunal.

Mas o THR critica os cineastas por não serem tão "meticulosos" em relação ao "outro lado": Moses Farrow, que tinha 14 anos e estava em casa no dia dos alegados abusos, e posteriormente acusou a mãe Mia Farrow de abusos e a irmã de mentir, é apelidado pelos familiares de mentiroso e fica-se por aí; e é notada a existência de "uma crueldade ocasional" na forma como Soon-Yi é tratada, com as acusações de abuso contra Mia a serem ainda mais liminarmente rejeitadas.

Nenhum deles surge no documentário e também é criticada a ausência de qualquer pessoa que expresse apoio, "mesmo que superficial", a Allen: o realizador é "representado" por excertos da versão áudio do seu recente livro de memórias "A propósito de nada” e chamadas telefónicas gravadas sem o seu conhecimento por Mia Farrow após a rutura da sua relação.

"E tem que ser dito: ninguém defende Woody Allen pior do que Woody Allen", destaca o THR.

A publicação defende ainda que Kirby Dick e Amy Ziering "claramente acharam que o caso que estavam aqui a construir era tão certeiro que a arrogância se instalou", dando vários exemplos de ligeireza no tratamento de temas.

"O documento apresenta argumentos sobre como Allen escapou das consequências, e alguns são plausíveis, como a ideia de que a comunicação social de Nova Iorque estava claramente do lado do filho nativo da cidade. Mas se se vai sugerir que a quantidade de dinheiro que as produções de Woody Allen trouxeram para a 'Big Apple' foi suficiente para ele exercer uma grande influência, é necessário apresentar os recibos", salienta o THR.

Mais criticado ainda é o segundo episódio do documentário, em que críticos de cinema usam a filmografia de Allen contra ele, "baseando-se principalmente numa análise superficial de 'Manhattan'" e uma montagem negativa de situações e diálogos dos seus filmes.

"Poucos aqui irão afirmar que a fixação romântica de Allen por mulheres muito mais jovens no ecrã (e fora) não é inquietante, ou que o seu relacionamento com Soon-Yi não deu a essas histórias uma inflexão perturbadora. Mas sugerir que os filmes de Allen 'prepararam' o público para aceitar que ele dormisse com a filha adolescente da sua namorada, e que isso era uma cortina de fumo para o abuso sexual de uma menor, é uma interpretação de psicologia que exige mais perícia do que aquela que tem um crítico cultural", defende o THR.

"Estes erros limitam o peso intelectual de 'Allen v. Farrow', mas a publicação diz que "o peso emocional é sustentado até ao final catártico, no qual a escritora Lili Loofbourow resume talvez a tese abrangente da obra: 'Tanto disto é sobre a nossa complacência de não querer saber o que se passa para não termos de lidar com isso.'".