"Não sei se estão a ver aqueles dias em que não acontece nada, a não ser o que o que aconteceu e não aconteceu. E do nada há uma luz que se acende. Não se sabe se vem de fora ou se de dentro, apareceu". É assim que Sérgio Godinho arranca o seu novo disco, "Nação Valente", que chegou às lojas e aos serviços de streaming no final de janeiro. Este é o 18º álbum de originais do escritor de canções, o primeiro desde 2011, ano em que editou "Mútuo Consentimento".

As canções de "Nação Valente", que chegou sete anos depois do último registo de originais do músico e depois de dezenas de êxitos, como "Primeiro Dia" ou "Com um Brilhozinho Nos Olhos" (o tema mais ouvido do músico no Spotify, com mais de 300 mil reproduções), foram o mote da conversa com o SAPO Mag e do direto no Facebook, onde o cantor respondeu às perguntas dos fãs.

Mas, no intervalo entre os dois discos, Sérgio Godinho não esteve parado: editou um livro de contos e um romance; andou na estrada com Jorge Palma; deu corpo a Navalhas em "Refrigerantes e Canções de Amor", primeira longa-metragem para cinema com argumento de Nuno Markl; participou em três discos de outros projetos ("Caríssimas Canções", 2013; "Liberdade", 2014; e, " Juntos Ao Vivo No Theatro Circo", 2015, com Jorge Palma) e deu ainda mote para um banda desenhada de Fernando Dordio e Osvaldo Medina, "O Elixir da Eterna Juventude".

O novo álbum do músico português conta com 10 canções - nove com letra de Sérgio Godinho e uma versão do tema "Delicado", de Márcia. O cantor assina também a letra e música de "Baralho de cartas" e "Noites de Macau", tendo entregado as restantes sete músicas a diferentes compositores -  Hélder Gonçalves em "Artesanato" e "Nação Valente"; David Fonseca em "Grão da mesma mó"; José Mário Branco em "Mariana Pais, 21 anos"; Nuno Rafael em "Tipo contrafacção"; Filipe Raposo em "Noite e Dia"; e Pedro da Silva Martins em "Até já, Até já".

Veja no vídeo um excerto da entrevista a Sérgio Godinho:

"Chamar outra vez José Mário Branco, que é o meu mais antigo parceiro - nos nossos primeiros discos há canções comuns, minhas e dele -, é diferente de chamar o Pedro Silva Martins, dos Deolinda, com quem eu nunca tinha trabalhado", explicou o músico em conversa com o SAPO Mag, acrescentando que o desafio foi apresentado de forma diferente a cada artista.

"Nação Valente", uma referência ao hino nacional, é uma das canções do novo registo de Sérgio Godinho e dá nome ao disco.  O músico explica a escolha: "Embora não sejamos sempre valentes, precisamos de puxar pelos nossos brios, coletiva e individualmente. A referência que há nessa canção é realmente a Portugal - fala deste país que é um país de ideias libertas. É uma série de vontades de tornar este país melhor e também de contar que estamos ainda com muitas grades à nossa volta. A nossa situação internacional em termos financeiros é um pouco mais esperançosa mas não estamos livres, estamos endividados e, por muito que se queira renegociar tudo isso, continuamos endividados. Mas é também uma vontade de sair disso em termos individuais e de contarmos com as nossas forças".

Sérgio Godinho

"É uma frase extremamente positiva e é uma canção extremamente positiva - ela tem letra minha, como todas as canções do disco, e música do Hélder Gonçalves. E a canção transmite uma ideia muito positiva que, aliás, contamina todo o disco, todas as outras canções. 'Há que ir em frente, Nação Valente' e, ao mesmo tempo, saber que temos uma consistência em nós - por isso é que o refrão diz 'fronteiras antigas, fronteiras abertas, quero uma país de ideias libertas'. E esta canção acabou por fazer sentido como título global porque, quando se ouve essa canção, as pessoas, ao princípio quando não sabiam que o disco ia ter esse título, perguntaram 'mas porquê?' e depois, quando ouvem várias canções, de repente, faz sentido o porquê", acrescenta.

Dar à luz um disco não é um processo simples, é "laborioso" e "longo", explica o músico. "Quando se grava um disco, não se ouve como se se estivesse de fora. Ele vai sendo construído e é um processo muito laborioso e, de certo modo, longo. Portanto, não há bem aquela sensação de estar a ouvir como se fosse a primeira vez. Esteve-se a ouvir, foi-se construindo. Mas é bom que, quando as coisas começam a tomar forma, a arquitetura começa a compor todo o disco. Acho que é uma sensação muito forte porque chega o momento em que dizemos, 'olha, esta canção já existe' - pode não estar completa muitas vezes, ainda tem acrescentos, mistura e isso tudo. Mas há um momento em que sentimos que ela já está a andar pelo próprio pé", conta Sérgio Godinho.

"Não sou um cronista da vida por si só"

Ao fim de quase 50 anos de carreira, a vida, o que o rodeia e "a vontade de contar histórias", continua a ser a principal inspiração de Sérgio Godinho. "A vontade de contar histórias, o que me rodeia é uma inspiração. Eu oiço muito, às vezes até são frases desgarradas que nas quais encontro um significado que pode ser transformado. Mas não sou um cronista da vida por si só. Acho que vou refletindo de maneiras mais diretas, de maneira mais filosóficas", confessa.

"Por exemplo, a canção 'Grão da Mesma Mó' é uma série de interrogações e avisos: 'vê lá o que fazes, há tanto a fazer; fazes que fazes ou depois pões sementes a crescer?'. Isso acabam por ser interrogações e interpelações às outras pessoas e, ao mesmo tempo, são uma reflexão própria. E é ao transformar isso num objeto artístico ou literário, falando das letras, que se torna noutra coisa, fica com uma forma própria. A interação com a música também é muito importante - geralmente, na maior parte dos casos, os compositores entregaram-me as música antes e eu depois trabalhei sobre elas", revela o escritor de canções.

Veja a conversa que o SAPO Mag teve em direto com Sérgio Godinho no início do mês:

Nos discos, tal como acontece em "Nação Valente", Sérgio Godinho faz crítica social. Apesar de defender que a etiqueta "cantor de intervenção" não o define, o músico assume-se "um interventivo da vida".  "A intervenção é tudo. É tocar na sensibilidade das pessoas. É, muitas vezes, uma canção ao longo do tempo - falando das canções mais antigas - ir por ela própria encontrando outros significados à volta, na vida. Eu sou um interventivo da vida", frisa Sérgio Godinho, acrescentando que continua a ter sede de ter mundo, tal como canta em "Mariana Pais", tema com música de José Mário Branco. "Continuo a ter sede de ter mundo. Mas aprendi muito porque vivi nove anos noutros países, também forçado por circunstâncias - não quis ir à Guerra Colonial e, portanto, estava numa situação militar irregular; não podia vir cá e só vim depois do 25 de abril", relembra.

Durante os anos em que viveu fora de Portugal, Sérgio Godinho confessa que teve oportunidade de viver e descobrir outros quotidianos. "Durante esses nove anos estive imerso noutras vidas, noutras experiências, noutras línguas, noutras culturas e noutros quotidianos - é no quotidiano que a gente vai descobrindo pequenas pérolas sem dar por elas, no dia a dia, de repente, há dias em que vale a pena. Aliás, a canção 'Grão da Mesma Mó' começa assim, e começa assim o disco - 'sabem aqueles dias em que não acontece nada, a não ser o que aconteceu e não aconteceu; E do nada há uma luz que se acende'. E é essa luz que se transmite para as outras canções do disco e por isso está em primeiro", conta.

Sérgio Godinho

Como sempre, amor também está presente no novo disco de Sérgio Godinho. Mas a forma de o cantar pode ir mudando, de acordo com a vida. "A forma de cantar o amor muda de canção para canção - por exemplo, o 'Baralho de Cartas', que é uma canção com letra e música minha, é uma descrição de um amor físico e há muitas canções em que não há nenhuma descrição do amor físico. Acho que vai necessariamente mudando ao longo dos anos com as experiências, com quem nos vamos encontrando, com o que vemos à volta. E o amor é uma coisa muito complexa e pode ser extremamente - e foi assim muitas vezes na minha vida e é - rico, mas também pode ser traumático e basta ver o telejornal para ver que o amor deu errado, errado", frisa.

"O amor dá muitas canções e eu sempre cantei o amor. Mas falo desses lados complexos também. Neste disco há também histórias. Por exemplo, a história da canção 'Até já, Até já', é sobre um casal que tem quase tudo para ser perfeito e, de repente, aquilo desmorona-se ainda no prazo de validade. Gosto de falar dessa complexidade também. Mas também há algumas em que são felizes. Em termos dramáticos, diz que é mais fácil escrever a infelicidade do que a felicidade porque a felicidade existe e a infelicidade ou as coisas que correm mal têm um carácter que dá para fazer história. Mas isso não basta. Há canções felizes e que são canções muito felizes também na composição", explica o músico ao SAPO Mag.

Os temas do disco "Nação Valente" vão ser apresentados ao vivo no próximo mês, em março. Os concertos agendados para os próximos dias 23 e 24 de fevereiro no Capitólio, em Lisboa, encontram-se esgotados, anunciou a editora Universal. Por isso, foi adicionada uma nova data no mesmo espaço: 25 de fevereiro, pelas 17h30.

O músico vai também atuar no Porto, na Casa da Música, a 3 e 4 de março.

Sérgio Godinho

"Não sei se vou tocar o álbum inteiro, tocarei grande parte. Mas não se faz um concerto de fôlego com nove ou dez canções. É uma questão de apresentar as novas às antigas, elas ainda não se conhecem. É uma maneira de elas ganharem intimidade e de se sentirem bem uma com as outras", revela Sérgio Godinho, frisando que "o alinhamento é sempre difícil de definir". "Vamos trazer para o alinhamento duas ou três canções que estavam um pouco na prateleira, com um bocadinho de poeira. Vão sair de lá fresquinhas", acrescenta.

"Nos concertos há uma troca de energia e de emoções. Eu associo sempre estas duas palavras porque acho que há energia pura e depois há as emoções que vêm com ela. É para os concertos que a canção conduz. Eu gosto dos palcos, sou um homem de palco. Fiz teatro também, comecei pelo teatro e pelo teatro musical porque, em Paris, estive dois anos no musical “Hair” e aprendi muito aí - aprendi a estar num palco e aprendi a associar o palco com a música e sempre foi um prazer repetir. Um prazer meu e dos músicos que estão comigo", conta.

Ao fim de quase 50 anos de carreira, Sérgio Godinho soma centenas de concertos. Mas como foram os primeiros? "Eu tinha dois discos gravados quando voltei para Portugal, o 'Os Sobreviventes' e o 'Pré-histórias', que tinham canções que já eram muito conhecidas das pessoas e que eram como a 'Aparição', do José Mário Branco, ou antes disso, como canções do José Afonso, ou do Adriano Correia de Oliveira, etc. O certo é que, quando voltei para Portugal, fui despejado nos chamados cantos livres que nasceram espontaneamente nessa altura. Isso deu um grande gozo porque, de repente, estava a cantar as minhas canções, no meu país, perante um público que conhecia essas canções - não tinha havido um processo de crescimento de primeiro cantar num sítio muito pequenino e depois cantar num sítio grande. Foi um embate", relembra.

"Lembro-me de estar no S. Luiz, em Lisboa, no início de maio e de encontrar-me bem com aquela gente que estava no palco comigo e com as pessoas que estavam ali. Curiosamente, o Teatro S. Luiz é o teatro onde depois eu regressei muitas vezes e sob muitos formatos. É já uma casa", confessa Sérgio Godinho.

"O estilo de música de manhã não me pode despentear muito"

Fora dos palcos e dos discos, a música está sempre presente no dia a dia do escritor de canções. "A música está presente todos os dias, desde manhã. O estilo de música de manhã não me pode despentear muito porque tenho de ir pentear. Oiço muito música clássica e barroca de manhã. Oiço coisas que ponham a cabeça em ordem. Eu oiço todo o género de música", revela.

"É segundo os dias e segundo os momentos do dia. Às vezes, à noite, vou ouvir o que não oiço há não sei quantos anos. Isso acontece-me com as minhas canções, mas mais raramente. É quando quero desenterrar uma canção porque a quero usar ou qualquer coisa assim. E acabo por ouvir mais cinco ou seis do mesmo disco e não era a minha intenção. Portanto, sou muito imprevisível nisso. Tenho dificuldade em criar rotinas e por isso foi bom escrever o meu romance - durante um ano e meio, quase quotidianamente, um pouco de com aquele romance, com as personagens a crescerem, etc. Deu também uma continuidade que eu não tenho muito", acrescenta.

Já sobre o novo romance, Sérgio Godinho fecha-se a sete chaves. Tudo está no segredo dos deuses. "Vem aí um segundo romance, em princípio em setembro. Estou neste momento a pôr a mãos numa revisão à sério desse romance. Não se pode dizer nada", frisa.

O disco "Nação Valente" termina com "Até já, até já". E assim terminou a conversa Sérgio Godinho: "Até já, até já. E até sempre".