As quatro óperas, de diferentes autores, foram inspiradas em quatro constituições, três delas ligadas pelos ideais democrático-liberais - a de 1822, primeira carta fundamental portuguesa, a republicana de 1911, a Constituição de 1976, já instaurado o regime democrático -, e uma quarta, imaginada num quadro distópico, resultado de especulativa e catastrófica ascensão de um partido extremista em Portugal em 2030, sobre a qual versa “2030, a Nova Ordem”, de Jorge Salgueiro.

Em entrevista à agência Lusa, o compositor disse que esta ópera sobre uma distópica constituição não-democrática (2030) começou a ser concebida há três anos.

A trama dramatúrgica situa-se em 2030. O cenário imaginado é de contestação e de caos nas ruas. O partido Alternativa Populista Nacional (APN) no poder, decide anunciar que a "tuberculose do urso polar" está a disseminar-se entre os portugueses, e decreta o estado de emergência e o confinamento geral. A televisão, controlada pelo APN, divulga falsas imagens com o líder da oposição numa ‘rave’. O APN sobe exponencialmente nas sondagens e provoca eleições com o objetivo de rever a Constituição. A mulher do primeiro-ministro suicida-se. O povo vai votar numa "Nova Ordem".

Esta é a situação imaginada para um cenário dentro de seis anos. À Lusa, Jorge Salgueiro afirmou que a ascensão de ideais ditatoriais em Portugal “é mais recente, mas há movimentos nesse sentido, em todo o mundo”, e alertou: “Parece que as ditaduras estabelecidas querem influenciar as eleições em países democráticos, e parece uma doença a alastrar-se”.

O projeto da tetralogia operática foi apoiado pela Direção-Geral das Artes, no biénio 2023-24, e dele constam as óperas “1822 – Mau Tempo em Portugal”, de Eurico Carrapatoso, com libreto de Miguel Jesus, “1911 - A Conspiração da Igualdade”, de António Victorino d’Almeida, com libreto de Francisco Teixeira, estreadas no ano passados, e “1976 – A evolução dos cravos”, de Vítor Rua, com libreto de Risoleta Pinto Pedro, que se estreou em abril último.

Jorge Salgueiro assina o libreto e composição de “2030, a Nova Ordem”, que é levada à cena no Fórum Municipal Luísa Todi, em Setúbal, por um elenco constituído pelas sopranos Carolina Pinho, Constança Melo, Helena de Castro, Leonor Rovisco e Mariana Chaves, os barítonos Diogo Oliveira, João Merino, e Gonçalo Martins, da Companhia de Ópera de Setúbal, a bailarina Daniela Pessoa, o Coro Setúbal Voz, e ainda a Academia de Dança Contemporânea de Setúbal, mais a Banda da Sociedade Musical Capricho Setubalense.

“A banda vai ter um papel engraçado. Além da participação musical, vai ter um papel dramatúrgico, vai começar a tocar na receção ao público, fazendo parte do APN, e vão estar a fazer campanha pelo partido, e terão participações ao longo da ópera”.

O compositor referiu-se à Companhia de Ópera como uma “equipa de base” que “vai participando em todos os projetos da Associação Setúbal Voz, e não cantores convidados para cada projeto”.

Salgueiro disse que a Associação Setúbal Voz procura “cantores residentes na área metropolitana de Lisboa, especialmente na margem sul do rio Tejo, pois é mais prático para os ensaios e não fica tão dispendioso o transporte”.

“Nós procuramos fixar a equipa de cantores o mais perto possível da sede da associação que é em Setúbal”, acrescentou, referindo tratar-se de “uma companhia de ópera em construção”.

A ópera “2030, a Nova Ordem”, em um ato, com a duração de uma hora e 45 minutos, estará em cena no Fórum Luísa Todi, em Setúbal, de 08 a 10 de novembro, depois ruma para Lagoa, nos dias 22 e 23, onde sobe ao palco do Auditório Carlos do Carmo. Nestas cinco récitas a ópera é apresentada com música gravada pela Orquestra do Norte, sob a direção musical de Jorge Salgueiro.

No dia 14 de dezembro, está em cena no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, com a Orquestra do Norte, que não toca em Setúbal pois “o fosso de orquestra do Luísa Todi está inoperacional, e em Lagoa a sala não tem fosso”.

Salgueiro reconheceu que “é mais complicado dirigir uma ópera com música gravada”, pois vai estar de auscultadores e metrónomo. Em palco vão estar os oito cantores líricos, os 50 elementos do Coro Setúbal Voz e ainda os 25 músicos da Capricho Setubalense.

O compositor enfatizou a vertente pedagógica da arte, fazendo um “balanço bastante positivo” da tetralogia, por terem abordado "este assunto, que em geral não estudamos, ou esquecemos e é um processo de aprendizagem sobre as nossas constituições que tão importantes são”.

O compositor realçou a ópera sobre a Constituição republicana de 1911 que focou a luta das mulheres pelo direito de voto, que “acabou por ser negado, e a influência da Maçonaria na transição do regime”.

“Há um conjunto de acontecimentos, em que ficamos muito mais ligados a eles", através das óperas, "pois acabamos por conviver com as personagens históricas, e isso é muito enriquecedor”, defendeu.

A par da apresentação das diferentes óperas, foram realizados eventos “em torno da iconografia musical dos movimentos políticos”.

Algumas dessas melodias são citadas nas diferentes óperas, por exemplo a "Marcha da Maria da Fonte", de 1846 de Paulo Mitosi e Ângelo Frondoni, que aparece na ópera “2030, a Nova Ordem”, entoada numa manifestação popular, disse o compositor, sublinhando que esta iconografia "musical-política" é comum a todas as óperas.

Na ópera “1911 - A Conspiração da Igualdade”, por exemplo, há uma citação do "Requiem", de João Domingos Bomtempo, o compositor que se bateu pelo liberalismo: em “1976 – A evolução dos cravos” é interpretada a canção “Jornada”, de Fernando Lopes-Graça.

Sobre a ópera que compôs e para a qual escreveu o libreto, Jorge Salgueiro disse que teve “a preocupação de ter não só um caráter épico e político, e um lado lírico, como o fator humano do amor e da traição”, nomeadamente através da personagem do primeiro-ministro e das suas relações com várias mulheres.

Salgueiro disse que o facto de ter escrito o libreto e composto facilitou o trabalho de criação.

“Desde logo libertou-me do rigor do texto escrito por outro autor. Por exemplo, se me surgir uma melodia antes do texto, posso sujeitar a construção do texto à melodia que já tenho, o número de sílabas vai ser aquele que a minha música permite. Se eu tiver o texto escrito, vou ter de me sujeitar ao número de sílabas escritas e vou ter de condicionar a música aquele texto”.