No rescaldo do Muvi Lisboa, Festival Internacional de Música no Cinema, que decorreu no Cinema S. Jorge entre os dias 1 e 6 de dezembro, falámos com Filipe Mateus Pedro, um dos responsáveis pela direção e programação.

MUVI

Acho que muita gente te conhece como Filipe Mateus Pedro, jornalista ou DJ residente de afters do festival Alive... Conta-nos um pouco da tua história e do Muvi. De onde é que partiu a ideia e o que está na base da criação do festival?

FMP: Já fiz muita coisa... Já fiz revistas universitárias, já fiz uma série de coisas, no Clix, no Destak... Cheguei à Lusa, para aí há sete anos, e entretanto sempre tive a vontade de fazer um festival. Organizei um evento que era um micro-festival de dez bandas na Aula Magna, durante dois dias, em julho de 2000. Na altura, fazia rádio na Marginal, e basicamente foi uma coisa de “levar lá os amigos”. Convidaram bandas amigas e essas bandas levaram amigos, e amigos, umas seiscentas, setecentas pessoas, o que não foi nada mau. Depois tive uma participação também no Fest, como DJ convidado e como produtor de bandas, ou seja: a parte musical foi um bocadinho escolhida por mim. Ganhei alguns calos e alguma coragem para fazer o Muvi, que resulta de muita coisa, de andar sempre de festival em festival, tanto de cinema como de música. Por isso, o Muvi teria de ser sempre ponte entre o cinema e a música. Havia um festival que era o IMAGO [International Young Film Festival] no Fundão, que era 50-50: metade música e metade cinema. Vem daí muita coisa, vem do Curtas de Vila do Conde, que tem também uma parte musical muito forte... Agora menos, com a saída do Dário Oliveira, que saiu para fazer o Porto/Post/Doc, que infelizmente é na mesma altura do Muvi, e é impossível ir ao Porto ver esse festival, cujo conceito também acho muito interessante. E há outros festivais, o Indie, o Doc Lisboa, que têm também pequenas secções ligadas à música – que são cada vez maiores. O ano passado, quando começámos, foi para estabelecer um território. A altura, o início de setembro, não terá sido a melhor. Muitas pessoas de férias, e alguns outros festivais ao mesmo tempo. Este ano fizemo-lo a seguir ao Mexefest, de 1 a 6 de dezembro, com after-party a 7. Ou seja, basicamente foi uma tentativa de alargá-lo um dia, de fazer com que se parecesse mais amplo: em número de filmes exibidos, em número de atuações musicais. Os concertos resultaram muito bem, as sessões especiais idem. Tivemos 28 longas-metragens em competição, mais seis curtas nacionais e seis internacionais e muitos vídeos, num total de 160 filmes.

Sentias que havia a necessidade de um festival como este em Lisboa?

FMP: Sim. Acho que os outros são mais abrangentes, não têm só o olhar na música, e eu acho que esse olhar é importante para falar sobre música, sobre os temas que a ela dizem respeito. Tanto do ponto de vista da literatura, como de pontos de vista técnicos, de produção de filmes, de recolha de imagens e sons. Há todo um território que é possível abordar e focar na música. Falar com as bandas depois dos concertos, dar espaço ao público para contactar com as bandas. Ou seja, no Muvi o concerto acaba mas não acaba a participação da banda – ela lá está para falar com o público, ou comigo, ou com outra pessoa qualquer da organização, que queira fazer perguntas. Eles estão disponíveis para isso, para vermos os vídeos deles, para os debatermos e à sua imagem. No caso do Kwan e do Electric Man foi ainda mais interessante porque eles fizeram VJing, e fizeram um trabalho muito criativo de imagem, o que fez com que essa ponte com imagem fosse ainda mais conseguida do que noutras situações. Acho que é muito interessante, esse debate.

Filipe Mateus Pedro

Sentes que já há um público para o Muvi? Como é que foi a recetividade por parte de quem passou pelo festival, tanto na primeira edição como nesta?

FMP: Há muitas pessoas que não conseguem vir ao festival, e que nos mandam mensagens a dizer que querem que o festival vá às suas cidades, nomeadamente o Porto, o Algarve. Querem extensões do festival, e isso é sinónimo de que as coisas estão a correr bem. Houve um dia que me orgulhou, o de sábado, que é um dia não competitivo mas muito difícil de programar, porque é necessário andar ali a contactar e a tentar descobrir contactos de pessoas do meio para conseguires filmes. Tivemos ali grandes clássicos como o Quase Famosos, edição especial extended, o Música no Coração, restaurado a partir do original, o A Band Called Death, no encerramento, ou mesmo a Björk, com o Biophilia Live e o When Björk met Attenborough. Acho que são filmes com muita qualidade e que às vezes não é possível apanhar em sala. E o [Cinema] São Jorge tem condições ótimas de projeção – nem sempre o som é o ideal, mas o da Sala 3 é fantástico. E acho que houve aqui coisas giras, como o do Palma e do Godinho (Juntos: Jorge Palma e Sérgio Godinho ao vivo no Theatro Circo) e o do punk em Portugal (Punk em Portugal 78-88), apesar das suas dificuldades técnicas (porque foi feito a muitas mãos). No geral tivemos bastante público e houve uma série de sessões que despertaram a curiosidade. Filmes que de facto vieram pela primeira vez a Portugal, como o Creative Despite War. Ou seja, há uma série de coisas que o festival começa a conquistar. É uma coisa muito pequena, com um orçamento muito limitado. O nosso orçamento é risível considerando os filmes que temos, e as atuações que temos. As quatro exposições, a Ana Cláudia Silva a fazer uma exposição fantástica, o Rui M. Leal a levar finalmente a Lisboa a maior exposição dele, a Vanessa aka The Super Van e o Tintacrua, que fizeram um trabalho incrível.

Falaste da possibilidade de extensões. É uma coisa que tenham desejo de fazer, tanto em cidades maiores como em cidades mais pequenas que estejam ligadas à produção de música e vídeo, como as Caldas da Rainha ou Barcelos, sítios onde poderiam ter uma recetividade tão boa como a de Lisboa?

FMP: Sim, sim. Aliás, um dos filmes que nós passámos foi o A Scene Called Barcelos, produzido pela Red Bull Portugal. Todos esses movimentos não são esquecidos pelo Muvi, nós de facto temos essa ideia de fazer algo. Pode não acontecer ainda este ano – aliás, este ano é difícil que aconteça ainda alguma coisa relacionada com o Muvi – mas certamente que, antes do Carnaval, as extensões vão ser uma realidade. Estamos a fechar extensão em Portimão, no Porto também estamos quase, e em princípio Braga, Coimbra... Há uma série de sítios onde iremos levar o festival, não nas mesmas proporções, mas mostrando alguns filmes, os que possamos mostrar, porque há uns em que os realizadores nos deram total liberdade e os quais já temos legendados e feitos por nós, e pela nossa equipa, à custa de muito suor – porque legendar um filme é das coisas que mais trabalho dá... E eu sou de Letras, sei bem o trabalho que dá fazer a legendagem e a tradução de um filme!

Qual é o critério da selecção dos filmes?

FMP: Vemos mesmo muita coisa. Geralmente abrimos a competição com muita antecedência; no ano passado, abrimo-la em março/abril e ficou aberta até setembro. Recebemos muitos vídeos, algumas curtas e algumas longas, e muita coisa do mundo inteiro. Depois, há ali uma parte em setembro em que pensamos que devíamos ter mais umas coisinhas, e começamos a procurá-las. Não é que nos passe ao lado as coisas que se programam em festivais como o SXSW. Há muitos festivais importantes, como o Doc'n Roll, em Inglaterra, ou o HFFF, na Croácia, com os quais tivemos uma parceria o ano passado e este ano voltámos a ter. Acho muito giro, tem que haver essa permuta entre festivais e filmes, o 400 Years of Searching vêm daí.

Filipe Mateus Pedro MUVI

Há algum filme que tenha ficado de fora?

FMP: Sim. Há um que ficou de fora porque me pediram um bocadinho mais daquilo que eu queria dar por ele, e então houve ali uma certa dificuldade. Mas o Orion, que é uma vergonha não ter passado em nenhum festival português – o que é inacreditável, é um filme fabuloso, conta a história de um impersonator, de uma pessoa que imita o Elvis, com todas as suas nuances. É uma pena que ninguém o tenha ido buscar.

E há algum filme que gostasses de ter no Muvi, que já tenha sido ou não produzido?

FMP: Tantos! O Stop Making Sense, por exemplo, dos Talking Heads – que quase tivemos no ano passado, porque fazia 30 anos e era uma efeméride fantástica, só que só nos contactaram mesmo em cima do festival e já não deu. O Purple Rain, do Prince, seria fantástico. Muita coisa dos anos 1980 e 1990. O Some Kind Of Monster, dos Metallica, que mesmo para quem não goste da banda é um documentário fantástico, é como ir ao psiquiatra com os Metallica, um documentário de uma banda como ele deve ser feito.

Pegando na realidade portuguesa: nós temos alguma tradição de produção de conteúdos cinematográficos em relação à música. Temos os exemplos, mais recentes, do Tiago Pereira e do Eduardo Morais. Como é que avalias o estado da arte neste momento?

FMP: Filmes como o do Tiago Pereira e como o do Phil Mendrix, que foram os dois premiados – um pelo público e outro pelo júri – mostram a vitalidade e a força que o cinema português documental, sobre música, está a adquirir. Também ajuda muito o facto de que tanto o Indie Lisboa como o Doc Lisboa têm secções de música fortes. Mas, claro, há um reforço aqui com o Muvi, e não é à toa que um documentário como o do Punk em Portugal 78-88 estreie aqui. E há outros filmes que fomos buscar: o do Pedro Abrunhosa, o dos Moonspell, que podem não ser tão interessantes para um público, mas que mostram que há uma preocupação cada vez maior de fazer cada vez mais coisas, em curta, longa ou média-metragem, caso seja para a internet, como caso do Branko, ou para serem vistos em sala. Há cada vez mais coisas interessantes: o Edu Morais, sem dúvida – o ano passado mostrámos coisas dele. Este ano falámos logo com ele para mostrar uma série de coisas, estávamos disponíveis para mostrar desde o António Sérgio até ao Barreiro Rocks. Passámos apenas o que ele editou, o Bastardos, mas claro que temos sempre muito gosto e muito prazer em o termos connosco, o Edu sabe que tem uma casa no festival, e teremos sempre muito à-vontade e gosto em mostrar os filmes dele. Porque é um jovem, das Caldas, um dos sítios onde há mais movimento de música e de facto é uma pessoa que tem um olhar novo, acho que varre com alguns clichés do género, e com coisas mais televisivas. É um olhar muito próprio, tanto a nível de estética, como de fotografia. E isso resulta sempre em obras mais criativas.

Filipe Mateus Pedro MUVI

Estamos a falar de um festival de cinema, mas não nos podemos esquecer de que há festivais de música que, no seu cartaz, têm este segmento. Lá fora existem vários, mas por cá ainda vemos isto talvez com um nível mais pequeno – estou a lembrar-me, por exemplo, do Amplifest e do Bons Sons, que exibem no seu cartaz filmes sobre música.

FMP: Exato. O de Sines também o faz. E Paredes de Coura chegou a ter parceria com a IMAGO e o Indie, o ano passado, teve uma componente também de cinema documental. Acho que é muito importante.

Os grandes festivais de música têm espaço para esse tipo de programação?

FMP: Paredes de Coura tem um auditório ali ao lado. Antes, durante, e depois, pode perfeitamente mostrar documentários sobre música, os próprios documentários feitos sobre o festival, feitos pela Vodafone, em parceria com o Canal 180. Aliás, o Canal 180 é um amigo do Muvi, e sempre será. Há uma ponte entre todos estes promotores culturais. O Canal 180 faz mais pela cultura do que qualquer canal generalista português. Sem dúvida que haverá sempre ponte entre nós e a VICE, nós e o Canal 180. Acho que temos de ser agregadores. Não vamos dizer que não a um filme que tenha passado no Indie ou no Doc só porque já lá esteve. Não nos interessa isso; interessa-nos agregar. O filme do Phil Mendrix passou no Muvi com uma versão com mais capítulos do que tinha no Doc Lisboa. Há público para isso, há público que ainda não tinha visto o filme, há uma hipótese de o premiar novamente. No Doc Lisboa recebeu o prémio do público; no Muvi recebeu o do júri. Complementa! É mais um prémio para o filme, e justíssimo, porque o merece. Tudo cresce se falarmos mais e debatermos mais as coisas.

Que balanço fazes do festival?

FMP: Positivo. Porque tivemos mais público, mais conteúdos, mais filmes – acho que ultrapassámos mesmo os 160... É muita coisa. Dá um certo orgulho ver o catálogo, navegar naquilo. Os nossos materiais promocionais tiveram um melhor design este ano, mais qualidade, a nossa loja estava muito melhor e mais apelativa, vendemos mais sacas, mais t-shirts. Acho que começa a haver um culto do festival, um pequeno culto sustentado em exposições, em tudo isso. As pessoas vão às exposições e estão ali a conviver umas com as outras. É também um ponto de encontro, e os festivais também são isso, são um ponto para tu conheceres outras pessoas, debateres ideias, falares sobre futuros projetos. E, quem sabe, daí resultarão parcerias futuras, que serão exibidas no próximo festival.

Já que falas em exibições futuras, para quando um documentário sobre o SAPO On The Hop, esta grande webzine de grandes miúdos?

FMP: Realmente, é uma grande vergonha. A Matilde Ricon Peres, o Lourenço, o João, toda aquela equipa inicial do SAPO On The Hop tem realmente razões de queixa em relação à minha pessoa, deve apetecer-lhes espancarem-me. De facto andei a entrevistá-los e a fazer uma série de conteúdos, de filmagens, fui a Inglaterra – não de propósito, fui a um festival – e encontrei-me lá com o Lourenço, no meio da neve, com as inglesas todas sem casacos, sem nada, um festival universitário a que fomos, com três palcos, uma coisa assim na altura do Natal. E de facto valeu muito a pena, porque há coisas muito giras – só falta mesmo fechar aquilo! E por “fechar” quero dizer tirar aquilo da gaveta, acabar a edição. É arranjar um tempo para fazer isso. E agora, com a distância temporal, que já vai em cinco ou seis anos. A Matilde, com a sua t-shirt do Milhões de Festa... As imagens são deliciosas. Aquelas imagens iniciais em vídeo, que eles próprios recolheram, combinado com algumas imagens boas que nós fizemos com os depoimentos deles, dá algo muito giro. É pena que esteja em águas de bacalhau.

Fotografias: Muvi Lisboa