
Em entrevista à agência Lusa, Tiago Rodrigues disse que o festival tenta responder, em primeiro lugar, “às responsabilidades históricas” do certame, que são as de criação, pelo que a maioria da programação é composta por espetáculos em estreia mundial.
“Julgo que um dos espetáculos que vai marcar a edição deste ano, no Cour d'Honneur do Palácio dos Papas, o palco principal, é uma criação de Marlene Monteiro Freitas [...], 'Nôt' [Noite, em crioulo cabo-verdiano], que se inspira na questão da noite dos espetáculos, das histórias, da noite como alternativa à vida quotidiana, mas também n''As mil e uma noites', obra-prima da língua árabe […], e com a qual a coreógrafa quis estar em contacto”, frisou Tiago Rodrigues.
“Nôt”, espetáculo de abertura desta edição do festival, terá mais cinco récitas, até dia 11.
Um “momento importante”, tanto para o festival como para o percurso de Marlene Monteiro Freitas, “que tem tido um grande reconhecimento internacional, inteiramente merecido”, pois é “uma das grande artistas do nosso tempo”, sublinhou o diretor artístico de Avignon, sobre a coreógrafa distinguida pela Bienal de Dança de Veneza.
Marlene Monteiro Freitas foi também desafiada a convidar outros artistas, e as suas escolhas “irrigam toda a programação desta edição do Festival”, disse Tiago Rodrigues à Lusa, numa entrevista por telefone.
Além de ser a primeira cabo-verdiana a estrear-se em Avignon, no Palácio dos Papas, o lugar mais simbólico do festival, talvez por “coincidência poética e histórica” fá-lo quando no dia em que se assinalam os 50 anos da independência de Cabo Verde, destacou Tiago Rodrigues,
Entre os artistas escolhidos por Marlene Monteiro Feitas contam-se a cantora cabo-verdiana Mayra Andrade, que no dia 12 dará um concerto, no Palácio dos Papas, assim como o realizador Pedro Costa, "fonte de inspiração" para a coreógrafa, que terá um ciclo de cinco filmes em que ganham voz “populações mais desfavorecidas de Lisboa e dos imigrantes cabo-verdianos", como “Juventude em Marcha” e “Vitalina Varela”.
Por iniciativa de Marlene Monteiro Freitas, o filósofo e historiador de arte francês Georges Didi-Huberman também estará no Café das Ideias, e o coreógrafo e bailarino libanês Ali Chahrour apresentará em Avignon “Quand j'ai vu la mer“, em quatro récitas, até dia 08, a partir de hoje.
A dupla de performers Jonas & Lander, com “Coin Operated”, no Mahabharata, bar du festival, em cena nos dias 08 a 12, é outra escolha de Tiago Rodrigues, para uma edição que terá "uma presença portuguesa e cabo-verdiana muito forte”.
O árabe, língua convidada – a quinta mais falada no mundo e a segunda em França – é outra das apostas a permitir "momentos altos" em Avignon, que Tiago Rodrigues fez questão de sublinhar.
Admitindo terem sido avisados de que podiam arranjar problemas, ao tomar a língua árabe por convidada, o diretor do festival disse à Lusa que foi exatamente por isso que insistiram na escolha - até porque convidar a língua árabe é convidar “toda a diversidade”, recusando “visões estreitas, racistas e xenófobas” que marcam a sociedade atual, insistiu.
Além do mais, a língua árabe “é uma fonte de riqueza que tem de ser descoberta, mesmo quando consideramos que estamos [perante] qualquer coisa longe de nós”, defendeu Tiago Rodrigues.
Outro dos momentos do Festival destacados pelo seu diretor artístico é a apresentação de “Le procès Pelicot” ("O processo Pelicot"), uma homenagem a Gisèle Pelicot, cidadã francesa violada, entre 2011 e 2020, pelo marido e pelo menos mais 83 homens que este convidou através da Internet.
Ao pôr em cena "O processo Pelicot, no dia 18, no Cloître des Carmes, com mais de cinquenta atores e personalidades francesas a lerem partes do julgamento ocorrido em Avignon, que ficou conhecido como “As violações de Mazan”, o encenador e dramaturgo suíço Milo Rau “imita aquilo que Gisele Pelicot fez ao aceitar tornar públicos crimes horríveis”. "Mudar a vergonha de lado", passá-la para o quem de direito, para o perpetrador.
Neste espetáculo, coproduzido pelos festivais de Viena e de Avignon, que teve antestreia em Viena, em maio último, Milo Rau teatralizou o que se passou ao longo do processo de julgamento do ex-marido de Gisèle, Dominique Pelicot, condenado à pena máxima em dezembro último, num processo que condenou outros 50 homens.
O espetáculo cumpre a declaração de Gisèle - "A vergonha tem de mudar de lado", ao permitir que o julgamento fosse público, e consta da "leituras de interrogatórios, súplicas e comentários sobre o caso histórico", numa investigação feita junto de "advogados da família Pelicot, do tribunal, de especialistas em psicologia, taquígrafos, testemunhas e associações feministas, para relatar o julgamento de um sistema: o patriarcado."
Com "O processo Pelicot" em palco, há também o “desejo que essa dimensão pública pudesse ajudar a uma mudança social para que 'a vergonha mude de campo'”, frisou Tiago Rodrigues.
Ao permitir que as audiências de julgamento fossem públicas, Gisèle Pelicot “tranformou num teatro o Tribunal d'Avignon”, onde decorreu o julgamento, sustentou Tiago Rodrigues, alegando que as pessoas também iam assistir ao julgamento com o sentido de que “a sociedade possa continuar a evoluir”.
“Reconhecemo-nos nesse gesto, queremos apoiar esse gesto [Gisèle] e fomos ao ponto de o imitar”, sublinhou o responsável do Festival que sabe que o espetáculo “choca e perturba”, mas que também, graças a isso, “contribui para que a vergonha continue a mudar de campo”.
Tiago Rodrigues acredita que “a melhor homenagem” que podem fazer a Gisèle Pelicot “é continuar a tornar pública a sua história, imitar e apoiar o seu gesto e exigir que, não só quem está no publico, mas também as dezenas ou centenas de milhares que vão poder ver esta leitura em 'streaming' ao vivo na internet ou em salas de cinema - pois o certame irá projetá-lo à mesma hora que acontece no Cloître des Carmes -", reconheça esse gesto, e que o espetáculo continue "a tocar as pessoas da mesma forma, quando o processo aqui em Avignon tocou o mundo e transformou a cidade onde estamos.”
Tiago Rodrigues lembrou que estava em Avignon enquanto o julgamento decorria, e “via uma cidade que se sentia envergonhada com as primeiras notícias”, por uma coisa “tão horrível se ter passado lá", e como, ao longo das semanas que durou, "essa perceção evoluiu lentamente para uma espécie de orgulho por esta mulher ter tomado a decisão de fazer isto aqui; como o tribunal se foi enchendo e como Gisèle ia sendo cada vez mais aplaudida sempre que chegava”.
“Recuperar este processo e torná-lo audível de novo é também celebrar uma transformação que nós desejamos mundial, que desejamos nacional, evidentemente, mas que é também uma transformação local desta cidade de Avignon onde este processo histórico aconteceu”, concluiu Tiago Rodrigues.
Mais de quarenta espetáculos de teatro, dança, ópera e multidisciplinares fazem a 79.ª edição do Festival d'Avignon, a decorrer a partir de hoje, até 26 de julho.
Neste festival, Tiago Rodrigues estreará a sua nova criação, “La distance”, que terá 17 representações, nos dias 07 a 26, no L'Autre Scène du Grand Avignon. Com ação passada em 2077, num “cenário distópico, mas não improvável”, a nova peça do encenador e dramaturgo português “explora as consequências das escolhas [de cada um], assim como a possibilidade de comunicação entre gerações”, como consta na sinopse.
Interpretada por Adama Diop e Alison Dechamps, “La distance”, falada em francês e legendada em português, é produzida com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian Paris.
Depois de Avignon, "La distance" iniciará uma digressão internacional por estruturas coprodutoras da obra, que incluem o festival checo Divadlo e o teatro Plovdiv da Bulgária, o Théâtre Vidy-Lausanne, o Centro Dramático de Madrid e o Teatro Lliure de Barcelona, o Onassis Stegi de Atenas, o Piccolo Teatro de Milão, além de uma dezena de palcos franceses e da portuguesa Culturgest.
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