Uma das mais sólidas tradições da literatura latino-americana é a do realismo mágico, corrente que teve como grandes expoentes nomes como os de Jorge Luís Borges e Júlio Cortázar, entre muitos outros. Para o grande público, Gabriel García Márquez foi o mais conhecido e, de leituras e releituras, vastos contingentes de autores exploraram o género.

O SAPO Mag conversou com o cineasta e escritor Alan Minas, que em 2015 ganhou em Lisboa o prémio do público no festival luso-americano FESTin com o seu filme “A Família Dionti”. O livro conta a história de uma pequena vila em ruínas cujo patriarca, obsessivamente, mantém os sete filhos a ajudá-lo a reconstruir. No entanto, estes vão, de diferentes formas e com uma forte componente onírica/mágica, tentando livrar-se do seu destino.

O Mundo nos Cabia

O realismo mágico-poético parece ser a sua preferência – tanto no cinema como na literatura. Neste último caso, associa a sua proposta dentro do contexto desta produção muito ao gosto da América Latina? Ou tem outras referências?

Sim, esse tipo de género sempre me encantou, sobretudo quando apresentam um tratamento poético. Meu trabalho, seja no cinema ou na literatura, tem influência de autores do Leste Europeu e de alguns países da África, mas, admito que possuo maior afinidade com o modo latino de elaborar esse tipo de narrativa.

Em mim, coexistem as histórias de Gabriel Garcia Márquez em harmonia com o universo de Guimarães Rosa. As poesias de Jorge Luis Borges vão ao encontro do mundo sutil de Manoel de Barros. De alguma forma, esses autores estão imersos num mesmo rio criativo, no qual vou beber.

Uma das características das suas narrativas é um gosto pela desmaterialização, de humanos que se desintegram. “A Família Dionti” tinha isso, que volta a ter um papel importante no seu livro. Acha que é a liberdade, o rompimento com a realidade material, que te atrai neste recurso?

A transfiguração de personagens é um tema revisitado por mim. O rompimento com a realidade é um aspecto central, a conotar a liberdade do indivíduo, a sugerir suas potencialidades. As transfigurações que proponho, apesar de serem exploradas de modo ficcional e, por vezes, absurdas, apontam para aspectos inerentes a todo ser humano.

Isso acontece quando Kelton se derrete de amor, literalmente, em “A Família Dionti”, ou no romance, “O Mundo nos Cabia”, quando Zudileu perde sua materialidade e começa a esfumar-se aos poucos. Refiro-me, através de tais metáforas, ao conceito da impermanência, que me é bastante sensível. Por intermédio de tais representações proponho refletir a respeito das mortes e renascimentos que experienciamos ao longo da vida.

Também busca novamente personagens de um interior remoto, uma realidade distante dos grandes centros urbanos... Acha importante essa distância? O que o seduz nestes universos?

Sinto-me muito à vontade em criar narrativas em um ambiente do campo, com poucas, ou nenhuma, referência urbana. É comum eu não explicitar as cidades onde as histórias acontecem ou, até mesmo, o tempo em que ocorrem. Essa escolha ajuda a retirar do espectador as referências concretas, às quais possa se apegar.

Para além disso, sinto que os espaços do campo estão impregnados por uma certa ‘magia’, um encantamento inerente aos elementos da natureza. Tudo isso contribui na elaboração da atmosfera narrativa pretendida por mim.

Não é raro notar que em minhas histórias as ambiências chegam a transcender seus papéis e acabam por adquirir protagonismo. Não consigo imaginar tais histórias sendo ambientadas em outro lugar e, ainda menos, num centro urbano. Seria um outro filme, uma outra obra.

Do cinema para o livro, como vê as diferenças logísticas e estéticas?

No momento em que começo a pensar em uma história, nunca me vem uma decisão clara sobre qual será seu suporte final. Somente alguns passos à frente, sobretudo por conta das contingências que envolvem as produções de um filme e de um livro, eu acabo por decidir o suporte em que pretendo explorá-la.

A despeito da diferença evidente entre cinema e literatura, não tenho um limite vincado em meu processo criativo pois penso que, na criação, tudo é possível em ambas as artes. Até mesmo em suas operacionalidades, é possível perceber que as duas artes encontram um território comum, estão mescladas.

A escrita do livro (na sua oralidade, na palavra precisa ou nas não-palavras e silêncios) e a imagem elaborada em meus filmes estão interligadas e, por vezes, com suas bordas dissipadas. Os meus textos são constituídos de forte teor imagético, uma influência clara do cinema.

E, da mesma forma, em meus filmes, torno-me obcecado por encontrar as palavras exatas. Ou seja, há um evidente grau de mistura entre os dois suportes, um reflexo de como as duas artes operam em mim.