Não é pacífico que livros escritos na antiga “Cortina de Ferro” ultrapassem as fronteiras do leste rumo à Europa Ocidental.

O escritor polaco Andrzej Sapkowski teve essa sorte - muito beneficiado pelo facto dos seis livros que compõem “The Witcher”, publicados nos anos 1990, terem inspirado um famoso jogo e uma série televisiva…

Com a “trilogia hussita”, iniciada em 2002 com “A Torre dos Loucos” e considerada a sua obra-prima, a travessia em direção a Oeste foi mais lenta, mas implacável. Portugal ficou para o fim: só 20 anos depois da publicação original a tradução aporta em terras lusas, através da Saída de Emergência..

Monstruosidades

Mas valeu a pena à espera: embrenhado no lodaçal da política do século XV, acompanha o médico Reynevan na sua alucinante fuga para a frente de um sem-número de perseguidores - tudo porque meteu-se com a mulher errada. Melhor que isso: todos os atavismos da política e da sociedade da altura são deslindados com um sensacional sentido de humor - complementado com terroríficas ou bizarras monstruosidades que entrelaçam a história ao sobrenatural, mas sem nunca pender para esse universo.

O pano de fundo são as guerras a envolver os hussitas: antes de Martinho Lutero espetar as suas fatídicas 95 teses nas paredes do castelo de Wittenberg e virar a Cristandade ocidental de cabeça para baixo, já tinham surgido uns tantos ensaios - mas nenhum com a força e a capacidade de sobrevivência daquele liderado por Jon Huss, em Praga, no início do século XV. Mais do que herege, Huss é figura central na construção da nacionalidade checa.

“O mundo não acabou em 1420”

“O fim do mundo não se deu em 1420… Tudo corria, por assim dizer, de acordo com a ordem natural. As guerras prosseguiram, as epidemias proliferavam, a peste negra alastrava e a fome abundava”.

Assim começa o seu relato Sapkowski. Nas lides contemporâneas, já vai longe o tempo em que o Romantismo idealizava uma Idade Média que, obviamente, nunca existiu: suja, violenta, cruel e “mal-cheirosa” é um retrato mais fidedigno de uma época onde, mesmo assim, criaram-se as bases para aquilo que somos hoje.

E o autor polaco nunca esquece, por exemplo, de descrever os comerciantes e a indústria, onde o conhecimento leva os homens em fuga a cruzar com personagens inventivos, entre os quais um certo Gutenberg, que nesta história perambulava pela Silésia tentando obter recursos para financiar o seu evento - nada menos que um que iria mudar a História da humanidade.

Sapkowski, claro, aproveita a situação para uma piada a interligar as duas revoluções - a da imprensa e a do protestantismo. Enquanto discutiam o invento, um personagem diz: “Basta que alguém reúna umas teses, as anote num pedaço de papel e o pregue à porta de uma igreja. Fora daí, Lutero! Sai de cima da mesa, gato vagabundo!”

O tolo apaixonado

De resto, o nosso herói em fuga, apaixonado e tomando todas as decisões erradas na esperança delirante de resgatar a sua amada, vai sendo ajudado e perseguido pelas mais singulares criaturas - cruzando-se frequentemente com os mais variados tipos de monstruosidades bizarras (mais ligados a situações de humor negro do que de ação) e, cuja falta de explicação para as suas origens, colocam a narrativa de Sapkowski a um passo do realismo fantástico.

É o caso de uma “Trepadeira-dos-Muros”, uma ave que se transforma num cavaleiro templário, de um levantamento de mortos num cemitério ou de um lobisomem tarado que andava a floresta sempre à espreita de pessoas a fazer necessidades para atacar…

Mas que ninguém se engane: o sentido de humor mal tempera esse retrato cínico de uma época violenta e cruel, onde a humanidade surge retratada naquilo que é a sua enorme capacidade de ser atroz.