O romance original de Coetzee toma a literatura e o exercício da escrita para primeiro plano, permitindo a abordagem de "ideias polémicas", que a adaptação corporiza, segundo a perspetiva do autor.
Elizabeth Costello, a personagem criada por Coetzee, aqui interpretada por Cucha Carvalheiro, é uma conhecida escritora australiana, no final da vida, cujo percurso é revelado através de uma série de palestras, supostamente proferidas em diferentes momentos, em diferentes pontos do globo.
Alexandre Andrade e Cristina Carvalhal colocam-na em frente ao "grande portão". Para o transpor tem de se sujeitar a um tribunal que avalia as suas crenças. Costello, porém, defende que um escritor não deve ter crenças, argumento não acolhido pelos juízes que a avaliam.
"Na expectativa de uma segunda audiência, Elizabeth discute com outras personagens aquilo a que prefere chamar as suas convicções, relativamente a temas como o amor, o mal, a arte e a razão. No entanto, quando chamada a depor, evita estes tópicos solenes, reduzindo a sua alegação à história das pequenas rãs que surgem na estação das chuvas, no leito do rio da sua infância", como se lê na folha de sala desta versão para teatro.
O julgamento remete para o penúltimo capítulo do romance, em que Coetzee se aproxima de novelas de Kafka, como "O Processo" e "Diante da Lei". Mas as referências literárias encontram-se em toda a obra do escritor, numa meditação sobre a natureza da escrita e como suporte da sua protagonista.
Costello é uma personagem presente noutras obras de Coetzee, como "A vida dos animais" e "O Homem Lento". O romance de juventude que lhe deu fama, "The House on Eccles Street", tantas vezes citado nesta obra, é uma versão de "Ulisses", de James Joyce, sob a perspetiva da mulher, Molly Bloom.
O desenlace de "Elizabeth Costello" é, também ele, um jogo de referências literárias. Toma a forma de uma suposta carta de Lady Chandos a Francis Bacon, que também pode ser um conto de Coetzee, e baseia-se na "Carta de Lorde Chandos", de Hugo von Hofmannsthal, texto do início do século XX que aborda a incapacidade da escrita, para expressar o real.
"O realismo nunca se deu muito bem com as ideias, e não podia ser de outro modo", avisa J.M. Coetzee, citado pela apresentação da peça. "O realismo assenta na convicção de que as ideias não possuem uma existência autónoma, apenas existem nas coisas. Portanto, quando se trata de debater ideias, como aqui [em 'Elizabeth Costello'], o realismo tende a inventar situações (...), em que as figuras dão voz a ideias polémicas e, em certa medida, as corporizam".
Com "Elizabeth Costello", Cristina Carvalhal volta a adaptar ao teatro um texto que não foi escrito para cena, à semelhança de produções anteriores, como "Cândido", de Voltaire, "Erva Vermelha", de Boris Vian, e "Cosmos", de Witold Gombrowicz.
Neste trabalho contou com o escritor Alexandre Andrade, autor de "As Não Metamorfoses", "Benoni", “Cinco Contos sobre Fracasso e Sucesso” e, entre outras obras, da peça "Copo Meio Vazio", apresentada este ano no ciclo Panos, da Culturgest.
"Elizabeth Costello", em palco, é uma produção das Causas Comuns, com o Teatro Nacional São João e a Culturgest.
Tem interpretações de Cucha Carvalheiro, Bernardo Almeida, Luís Gaspar, Rita Calçada Bastos e Sílvia Filipe, cenário e figurinos de Ana Limpinho, desenho de luz de José Álvaro Correia, e música original e desenho de som de Sérgio Delgado.
A peça fica em cena na Culturgest, até sábado, 16 de dezembro.
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