O autor de “Auto dos Danados” falava a cerca de 20 alunos dos 10.º e 11.º anos de uma escola privada da capital, no âmbito da iniciativa presidencial “Escritores no Palácio de Belém”, em Lisboa.

António Lobo Antunes recordou um episódio de assédio, por um professor de Moral, no Liceu Camões, quando, na aula, falavam do templo de Salomão. O professor apalpou-lhe os joelhos e “subiu pelos calções”. Mais tarde questionou-o sobre um assunto de foro íntimo que não entendeu, e que o levou a perguntar ao pai, do que se tratava, dias mais tarde. Sem lhe responder, o pai saiu da sala e “só se ouviu o carro arrancar”.

O professor, contou hoje Lobo Antunes, esteve dois meses sem lecionar e, quando regressou ao liceu, deixou de dar aulas à sua turma. “A coisa resolveu-se assim”, disse o escritor, para quem se deve “aceitar as coisas tal como elas são”.

Durante a conversa, o autor confessou ainda: “continuo a caminhar de mistério em mistério, e os livros são uma forma de responder a cada um desses mistérios”, disse o escritor, que em seguida citou “o grande escritor” espanhol Federico García Lorca: “Só os mistérios nos fazem viver”.

Numa conversa ponteada por memórias da infância e várias referências literárias, Lobo Antunes afirmou que, “quando deixamos de nos espantar, é que passamos a velhos”, e acrescentou que continua hoje a espantar-se com o mundo.

“Morre-se com a necessidade de se saber tanta coisa”, disse.

No diálogo com os alunos das Oficinas de S. José-Salesianos, em Lisboa, o escritor recordou a sua infância, “numa família tribal”, que vivia entre uma quinta em Benfica, na capital, e a quinta do avô, na Beira Alta.

Quando aprendeu a ler com a mãe, pelos três, quatro anos, logo as “letras/sinais” se apresentaram perante si ”como pessoas e vozes” e a ter uma inquietude por conhecer mais.

“Cada vez que aprendia qualquer coisa, surgiam-me novas perguntas”, disse o autor de 75 anos.

A leitura que fazia dos jornais, que circulavam pela casa, iniciava-a pela necrologia. O seu avô, aliás, comentava em voz alta os obituários e considerava - contou-o hoje o seu neto -, que “era uma questão de mau gosto”.

Todavia, para o menino Lobo Antunes, “morrer era afastar-se” do convívio, “ficar de olhos fechados”, mas “iam ficando os mistérios": “Onde é que eles [os mortos] estariam?”.

A decisão de ser escritor terá sido precoce, quando, aos cinco anos, apresentou numa folha, à sua mãe, o seu primeiro romance.

Na realidade, afirmou-o hoje, um livro é quando o seu autor quiser, mesmo que este seja “uma coisa estranha”, como justificou em seguida: “Eu estou a escrever aquilo que o livro quer que se escreva, e o livro não existe ainda, só vai existindo aos bocadinhos”.

Para o autor “escrever é conversar com vozes”, entre elas, a sua voz interior. “Não vejo pessoas, oiço vozes”, disse e, a dado passou, contou: “Se o meu avô me visita, não vou deixar de falar com ele”.

O autor de “Caminho como uma casa em chamas” afirmou que tinha saudades do avô, lhe fazia festas, a ele, um jovem esquivo essas festas, para não que não pensassem que era homossexual.

Sobre a escrita, Lobo Antunes disse que “é sobretudo uma questão de trabalho”, “um ofício de paciência”.

“Não há talentos, há bois, pessoas que marram as vezes necessárias”, disse, para referir que “escrever é emendar, emendar, emendar e emendar…”. E, para se começar a escrever, não se deve pedir conselhos a ninguém, pois ir-se-á escrever na perspetiva daquele a quem se pediu conselho, e transportar a sua visão do mundo.

“Há que escrever [tanto] até as palavras nos pertencerem”, insistiu o autor de “Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?”, que citou o poeta alemão Rainer Maria Rilke.

Lobo Antunes disse que continua a escrever à mão, e não gosta de usar computadores, pois “escrever ao computador é como fazer amor com preservativo”.

A infância justificou a opção pela escrita, pois, a dado momento, apercebeu-se de que ia ficar sem mistérios, e perguntou-se: “Como vou manter essa magia?”, e entrou então “numa vida de mistérios” aos quais procura dar resposta através dos livros.

Para o autor, com um livro “nunca se está só”. E recordou os tempos de leitura, quando estudava no Liceu Camões, em Lisboa, e acreditava que os autores escreviam só para ele, pois nos seus livros encontrava eco dos seus anseios.

No início da conversa, António Lobo Antunes foi apresentado pelo Presidente da República, que se lhe dirigiu chamando-lhe “génio", apontando-o como “um Nobel sem precisar do Prémio Nobel [da Literatura]”.

No final da conversa, António Lobo Antunes pediu que não se esqueçam dele.

“Não se esqueçam de mim. Rezem pela minha alma pecadora, se forem crentes”, terminou o escritor, que defendeu que há deuses, mesmo que não se possa falar deles.