Os agentes culturais foram ouvidos em audição na Comissão de Cultura e Comunicação da Assembleia da República, durante a manhã, sobre o novo Estatuto, na sequência de um requerimento do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda (BE).

"Este estatuto não serve, porque ninguém vai aderir se ficar como está", resumiu, logo na abertura das audições, o cineasta Miguel Cabral, da direção da Associação Portuguesa de Realizadores (APR), apontando deficiências na área laboral e na proteção social.

O Estatuto, aprovado em Conselho de Ministros a 22 de abril, que abrange as áreas do registo profissional, do regime laboral e do regime contributivo, está em consulta pública até quinta-feira, e vários representantes do setor têm apontado falhas graves no documento.

Na altura, a ministra da Cultura revelou que, com a aprovação do Estatuto, os trabalhadores poderão ter acesso a um subsídio para a suspensão de atividade, ao fim de três meses sem trabalhar, e que este terá a duração de um período máximo de seis meses, podendo ser utilizado uma vez por ano.

Perante os deputados da comissão, Miguel Cabral lamentou que se "mantenha a precariedade de décadas", através da possibilidade de celebrar contratos curtos sucessivos, o que considerou "preocupante".

Defendeu que "a chave para responder aos problemas do setor é encontrar verdadeiros incentivos para celebrar contratos de trabalho, e uma proteção eficaz no caso de suspensão de trabalho, que deve ser imediata, e sem uma espera de três meses, como está na proposta do Estatuto".

"É preciso inverter a banalização do recibo verde, e o Estatuto não responde a este paradigma negativo", avaliou, recordando que o processo de negociação do documento entre o Ministério da Cultura e as estruturas, "foi longo, mas as entidades envolvidas sentem que não ficam resolvidos os problemas".

O representante da Associação Portuguesa de Empresários e Artistas de Circo (APEAC) Carlos Carvalho lembrou que, em oito meses, só foram discutidas a primeira e segunda fases do Estatuto, "mas a essencial, que seria a criação de um regime especial de contribuições, só foi feita numa reunião, e o processo acabou por ser defraudado, porque a 22 de abril foi anunciada a aprovação" do documento, em Conselho de Ministros.

Considerou ainda que esta decisão "revelou um desrespeito muito grande por parte do Governo para com as associações que se esforçaram" para dar o seu contributo.

"Mas ainda vamos a tempo, se houver boa vontade do Governo, estamos dispostos a continuar, de contrário este estatuto não vai servir para melhorar as condições de trabalho e sociais dos profissionais da cultura. Muita coisa tem de ser alterada; este estatuto não serve para aquilo a que foi proposto", defendeu, na linha do que disse a APR.

Na sua área, Carlos Carvalho disse que o circo tem 30 salas itinerantes que levam "um espetáculo cultural, pedagógico e recreativo" a todo o país, e "continua sem qualquer tipo de apoios", há 40 anos.

Na opinião do responsável da APEAC, "o Governo não deve perder esta grande oportunidade de mudar uma situação de precariedade de décadas", sentimento que foi partilhado pela economista, investigadora e programadora cultural Amarilis Felizes, dirigente da Plateia - Associação de Profissionais das Artes Cénica.

"Não vemos que este estatuto traga um compromisso para a mudança do atual paradigma. Há uma falta de incentivo e de estratégias para promover a celebração dos contratos de trabalho", disse.

Amarilis Felizes considerou que, de uma forma geral, o trabalho desenvolvido ao longo de meses pelo Governo, com a colaboração de algumas entidades representativas, sai "frustrado deste processo", depois do anúncio do estatuto.

Lamentou ainda, perante os deputados, que a precariedade estrutural "não seja encarada como o principal problema do setor".

Nas rondas das perguntas, anunciou que a Plateia vai fazer chegar um conjunto de propostas a incluir no diploma, nomeadamente, para os concursos públicos de financiamento aos projetos dos artistas, de uma plataforma digital com todas as informações sobre os direitos laborais e tudo o que este Estatuto traz de novo, campanhas de divulgação do Estatuto e da lei laboral em escolas artísticas e instituições laborais.

Um aspeto que todas as entidades criticaram a uma só voz foi a de o novo subsídio, criado para a suspensão da atividade, porque "não está acessível a todos os trabalhadores da cultura, o que não é justo". Apontaram que, segundo a proposta do Governo, os profissionais "só podem aceder após três meses sem atividade, portanto [algo que] vai contra o objetivo de dar uma resposta rápida a estas situações".

A dirigente da Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea (REDE), Sara Goulart, também disse que havia "uma grande expectativa que este documento contribuísse para resolver os problemas do setor", mas saiu "frustrada".

"Há aqui uma questão de vontade política real para resolver estes problemas, é necessária uma fiscalização das situações dos contratos e recibos verdes, e uma necessidade de pedagogia sobre questões de segurança social", apontou.

Quanto à Performart - Associação para as Artes Performativas em Portugal, representada por Francisco Fernandes, louvou a criação de um estatuto, e defendeu um trabalho de sensibilização das entidades contratadoras, combate aos recibos verdes e maior fiscalização.

"Vamos fazer propostas de alteração à lei, o valor proposto para o subsídio é extremamente baixo. Ninguém consegue viver com este valor, deveria ter como referência o salário mínimo", advogou o responsável, acrescentando ter a expectativa de que a comissão de acompanhamento que vai ser criada terá um papel importante no processo.

A Performart reúne entidades públicas e privadas do setor, dos teatros nacionais D. Maria II e São João ao Organismo de Produção Artística (Opart), de instituições como as fundações de Serralves, Casa da Música e Centro Cultural de Belém, ao Instituto Politécnico do Porto, contando ainda com A Oficina, do município de Guimarães, a EGEAC, de Lisboa, associações culturais e companhias, de todo o país, num total de mais de 60 estruturas.

Na audição, o deputado José Soeiro (BE) apontou um hiato entre as expectativas geradas no setor e o resultado final do documento apresentado pelo Governo, que "não corresponde aos problemas identificados", e criticou a tutela por apressar a discussão, recordando que "a esmagadora maioria das pessoas que trabalha com recibos verdes são falsos recibos verdes, e, portanto trabalham em grande precariedade".

Do PCP, a deputada Ana Mesquita afirmou que a proposta que está em consulta pública "revela um grande desconhecimento da realidade, e tenta dar uma solução para uma variedade de umas 200 profissões, o que não bate certo".

"Estamos [PCP] a dinamizar sessões no país para recolher opiniões sobre o estatuto, e muitos dos trabalhadores rejeitam as propostas do Governo porque não garantem o apoio social para o dia-a-dia. Também não constroem uma reforma com valores dignos para o futuro, e acabam por normalizar a contratação com vínculos precários", reportou, na comissão.

A deputada comunista criticou ainda o documento, apontando que "tem normas que são piores do que as que se encontram no código do trabalho, e, afinal, há propostas que são piores do que as do regime geral", disse, concluindo: "Isto é um bonito laçarote num embrulho que pouco traz para resolver os problemas dos trabalhadores da cultura, e até agrava alguns".

A deputado Beatriz Gomes Dias, do BE, destacou que, das diferentes intervenções, resultou a necessidade de combater a precariedade no setor e defendeu que seja “integrado na própria definição do estatuto, ou seja, na exposição de motivos, que o trabalho na cultura é trabalho”.

Para a deputada bloquista, esta afirmação “deve ser repetida várias vezes para que fique inequívoco que as pessoas trabalham na cultura exercem uma função subordinada e respeitam todos os critérios para presunção de um contrato de trabalho”.

Este estatuto "deveria ser um ponto de partida para a resolução de todos os problemas do setor”, afirmou, destacando que o que sai desta reunião é que a pandemia veio “revelar e agravar” o problema pré-existente da “desproteção dos trabalhadores”.

Mara Lagriminha do PS reiterou a posição do Partido Socialista ao lado dos trabalhadores, na defesa dos seus direitos e no combate à precariedade, lembrando que aumentou “o número de inspetores na ACT [Autoridade para as Condições de Trabalho]”.

A deputada socialista destacou ainda que o PS consagrou “neste estatuto um capítulo exclusivamente dedicado à ação inspetiva da ACT, nomeadamente em situações, como foram faladas, de presunção de contrato de trabalho e sempre que há utilização indevida de contrato de prestação de serviços em condições de trabalho subordinado, e que neste estatuto é previsto fazer não só com a ACT, mas também com a IGAC [Inspeção Geral das Atividades Culturais] e com o Instituto da Segurança Social”.

Pelo PSD, a deputada Carla Borges espantou-se por ainda se estar a discutir a questão das condições do trabalho, o que considerou “incompreensível”, afirmando que o Ministério da Cultura “não está a ser capaz de dar resposta” a este problema, que já deveria “ter sido resolvido”.

Lembrando que a “Cultura é emprego e economia”, Carla Borges disse esperar da tutela um “combate à precariedade e não um reforço da precariedade”.

Em 02 de junho, a ministra da Cultura, Graça Fonseca, reforçou, no Parlamento, a disponibilidade do Governo para fazer alterações ao Estatuto dos Profissionais da Cultura.

“Estamos disponíveis para ajudar, alterar. Estamos todos muito a tempo de introduzir alterações. Temos em Portugal um momento histórico para aprovar um estatuto global para o setor da cultura. Trabalhemos em conjunto em vez de trabalhar para o espelho”, afirmou Graça Fonseca.

Esta quinta-feira é o último dia do período de consulta pública do estatuto, iniciada no passado dia 5 de maio.

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