A noite de sábado começou com uma sensação de conforto no âmago. Tanta gente à porta do RCA Club apenas podia significar uma coisa: que os Bizarra Locomotiva estão por fim a colher os frutos da sua labuta.
Longos anos a malhar arduamente no underground nacional com parco reconhecimento para lá da sua indefectível “escumalha” resultaram num crescente interesse aquando ao lançamento do “Álbum Negro”, atingindo agora um pico com esta nova colectânea de hinos sujos que é “Mortuário”. Se dúvidas restassem, a sala de Alvalade cheia para ver este concerto de lançamento foi prova suficiente para dissipá-las. E em boa hora a maralha acudiu em massa, já que os temas novos passaram no teste e serviram para apresentar uns Bizarra mais pragmáticos, para o bem e para o mal. Mas já lá vamos.
Antes da Locomotiva abrir de rompante as portas da morgue para deixar os seus defuntos temas ecoarem, foi tempo de ouvir La Chanson Noire, projeto solitário de Charles Sangnoir. O cantor e teclista, de postura lânguida, mostrou como a morbidez é universal, cantando em português, inglês e até francês com recorte igualmente dramático e gótico. Contudo, se o momento se revelava adequado para criar uma ambiência soturna e o próprio Sangnoir se revelou como um entusiasta de Bizarra, o público não pareceu encarar os esforços do cantor como mais do que mera curiosidade, mantendo-se uma cacofonia de conversas paralelas e bebericações avulso. Certos aspetos do concerto também não ajudaram, alguns temas apresentados tinham melodias interessantes mas Sangnoir tem uma tendência pouco saudável para o exagero vocal. Prova disso mesmo foi a versão de No Quarter, dos Led Zeppelin, que pedia uma performance energética q.b. e não um mostruário para a capacidade vocal.
Dado o fim do cabaret decadente, estava na hora dos Bizarra Locomotiva regressarem aos palcos. O clima de curiosidade era intenso, apesar de vários temas terem sido lançados na página de Soundcloud da banda, esta era a altura de ver como se aguentavam ao vivo. O salvo inicial dado com Febre de Ícaro e Mortuário (esta última com um riffalhaço, daqueles que só Miguel Fonseca consegue sacar) mostrou que o poderio sonoro permanece do apanágio do quarteto lisboeta, mas mostrou alterações ténues.
Mantendo a saudável harmonia entre o cariz orelhudo e a natureza psicótica das canções, o novo material regista uma continuação rumo ao rock/metal firmada em “Álbum Negro”, deixando para trás as cadências industriais que permearam “Ódio”. É natural. Este álbum foi criado por uma banda cada vez mais coesa, com Rui Berton (bateria) e Alpha (teclas e sampler) já “efectivos”, e calejada com cinco anos de estrada mais ou menos ininterrupta. Por outro lado, a própria postura dos Bizarra Locomotiva em cima de palco revelou-se mais pragmática, com menos momentos de teatralidade e menos pormenores que pontuam o material antigo da banda (não tivemos, por exemplo, direito à “mão morta” de Miguel Fonseca durante “O Escaravelho” nem às melodias retorcidas em “Cavalo Alado”). Em seu lugar, tornaram-se mais frequentes os momentos de interação directa com o público (puxar por “heys”, por exemplo), levando à especulação se este será uma faceta mais ligeira dos Bizarra a ser tomada ou se foi um caso único (ou se quem está a escrever este texto está meramente a avaliar em demasia as ocorrências).
No fundo, não interessa. Aqueles que se dirigiram ao RCA foram brindados com a habitual qualidade de uma banda que não sabe dar maus concertos. Sem pontos fracos, foi uma hora e meia de novidades como Segredos Ferrugentos (gótica, reminiscente, com as devidas diferenças, de uns Sisters of Mercy,) e Sudário de Escamas (intensíssima, quase Death Metal de andamento funéreo), mas também de jardas como Apêndices Humanos e Egodescentralizado.
A fechar uma noite que também contou com a (já habitual) presença de Fernando Ribeiro em “Anjo Exilado”, o quarteto maligno deu um encore, marchando a apocalíptica “Procissão dos Édipos”, declarando o seu estatuto como lixo existencial com “Ergástulo” e repetindo a novamente bem recebida “Mortuário”.
Apesar das observações acima descritas, desenganem-se: estes continuam a ser os mesmos Bizarra Locomotiva, com o mesmo Rui Sidónio a dar-se às mesmas loucuras controladas em palco, acompanhado por outros três arautos do caos sonoro. Mais do que o lançamento de um possível novo tomo da música pesada nacional, este lançamento serviu para algo ainda mais importante: a possibilidade do retorno destes senhores ao seu habitat natural que é a estrada. Que a Locomotiva prossiga o seu caminho, tem tudo para fazer uma boa viagem.
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