“O povo açoriano, enquanto povo insular, pela localização, pelas tormentas que passávamos, desde as intempéries, até à própria localização geográfica, sempre foi muito fustigado”, começa por explicar à Lusa Isabel Albergaria, presidente do Conservatório Regional de Ponta Delgada.

Para a organista, “isso deixou uma marca, desde o início” e “essa marca fez com que, consequentemente, a fé se instalasse como bem maior” e “a Igreja Católica encontrou aqui uma incubadora fantástica”, responsável, em grande parte, pelo desenvolvimento da vocação musical nos Açores.

A essa “grande convicção religiosa, obviamente que a música tem de estar associada”, não só pelos “rituais litúrgicos, que têm sempre música – e que também acaba por tocar nas bandas filarmónicas”, mas também pela parte profana das festas religiosas, onde prolifera a música popular.

“Daqui, todas as outras manifestações nascem, até para se confrontarem”, considera Isabel Albergaria.

A partir daí, acrescenta o maestro Marco Torre, “há um processo de transformação em algo nosso [açoriano]”.

“Temos essa capacidade de saber acolher, escolher o melhor desses modelos e reproduzir. Somos pessoas criativas por natureza”, sublinha Isabel Albergaria, adiantando que “talvez a música popular tenha sido um bocadinho mais original”.

Rafael Carvalho, grande impulsionador da viola da terra, instrumento que começou a tocar num grupo de folclore e que leciona no Conservatório de Ponta Delgada, confessa que não há forma “de perceber de onde vem a música popular, porque nasceu com as pessoas, desde sempre”.

“A música popular tem a componente de transmissão oral, que é diferente dos salmos, com reprodução escrita. O que a Isabel disse de recebermos e depois moldarmos, a música popular está completamente ligada a isso – o povo, na generalidade, era analfabeto. Há coisas que não estavam escritas e foram sendo adulteradas”, descreve.

Para o músico, “a insularidade preservou” muito do património musical tradicional açoriano.

“Também recebemos influências exteriores e, por uma questão de sobrevivência, com novos instrumentos e com várias novidades, a viola teve de se adaptar. Fomo-nos tornando especialistas em ouvir. O que vinha de fora, o pessoal trazia para a viola da terra e tornava seu”.

A meio caminho entre a música erudita e a popular, surgem as bandas filarmónicas, explica Marco Torre.

“Vieram, de alguma forma, democratizar a cultura e a música. Aparecem a meio do século XIX, após o liberalismo, e num ‘boom’ do associativismo”, beneficiando também da construção de coretos.

A própria ideia de espaço público surge nessa altura e associa-se a “um fator fundamental” - a revolução industrial.

“A partir do século XIX, as pessoas tinham tempo. Até então tinham de trabalhar de sol a sol. Entre 1850 e 1900, em Portugal, são criadas quase 700 bandas filarmónicas e isso é um número brutalíssimo”, refere o maestro, acrescentando que, “nos Açores, as filarmónicas têm a sua génese ligada com as bandas militares”.

Nessa altura, a “Igreja era muito ligada ao absolutismo, tinha muito mais interesse num Estado focado no Rei, mas, quando se dá o liberalismo, a Igreja abre-lhe as portas”.

“Abriu-se, ligou-se e pegou nas bandas filarmónicas e na música, porque, até então, mesmo os momentos laicos das festas religiosas eram particulares. É quando se começam a fazer festividades profanas oficiais que as bandas começam a fazer parte das procissões”, recorda.

Na região do país com mais filarmónicas por habitante, estas estruturas enfrentaram, há cerca de 30 anos, um inimigo improvável: a fotocopiadora, explica Marco Torre.

“Até àquela altura tínhamos de estar a passar tudo à mão, o que fazia com que houvesse muita composição por parte do mestre que estava à frente do agrupamento. Quando se dá o fenómeno das fotocópias, perdeu-se imenso esse património”, disse.

Também Rafael Carvalho identifica um entrave à proliferação da música popular: “A telefonia tem um papel muito complicado, porque as pessoas juntavam-se a ouvir a viola e a cantar e passaram a ouvir o Eusébio a jogar futebol e, à noite, as novelas”.

“A viola, coitadinha, já não tinha tanto interesse no contexto diário”, assinala.

Mas se, por um lado, a tecnologia e a influência exterior feriram, de algum modo, o reportório tradicional, por outro lado, abriram portas ao mundo.

Luís Banrezes, promotor cultural que dirige o festival Tremor e fundou a Marca Pistola, uma editora discográfica açoriana, destaca o papel da ligação com comunidades como a norte-americana.

“O desenvolvimento das rádios teve a ver também com os militares, mas a riqueza da música açoriana teve muito a ver com as nossas emigrações, que foram para os Estados Unidos e Canadá e dos próprios envios sonoros para cá”.

Banrezes reconhece na região uma “riqueza sonora absolutamente inacreditável”, que quer “capitalizar”, lamentando que o arquipélago não tenha, por exemplo, um museu dedicado inteiramente à música açoriana.

Por agora, o seu trabalho visa preservar o legado e dar-lhe uma dimensão global.

“Perdeu-se quase tudo e, entretanto, encontrou-se, por exemplo, música de artistas açorianos que fizeram música nas Bermudas. Ou imigrantes que, de repente, e por saudade, provavelmente, começaram a fazer música ‘disco sound’”.

Com géneros que vão do ‘disco’ ao metal, passando pelo hip hop e a eletrónica, Luís identifica a identidade açoriana numa característica: a “nostalgia”.