Zeca Baleiro deve o nome ao seu gosto por "balinhas", rebuçados em português de Portugal, e até se podia ter tornado um grande comerciante quando abriu uma loja de doces, mas preferiu o sabor das palavras e do violão.
Começou a sua relação com a música ainda no Maranhão, com 17 anos, a escrever letras para um teatro infantil. Ainda hoje compõe e produz canções para este género musical. O jovem Zeca tentou escapar à música quando na faculdade ingressou nos cursos de Agronomia e Jornalismo, mas ambos ficaram para trás.
Aos 20 anos viaja para Belo Horizonte à procura de uma carreira na música que só viria a acontecer, de forma mais séria, 12 anos mais tarde, quando em 1997 lança o primeiro álbum de originais, "Por Onde Andará Stephen Fry?”. Seguiram-se mais de 20 discos, de autor ou com colaborações, com temas bastante aclamados do público, como "Flôr da Pele", "Babylon", "Telegrama" ou "Lenha".
Cantou, escreveu e produziu para variadíssimos músicos, pois diz que se cansa de se cantar a si próprio. Apaixonou-se cedo pelo cancioneiro português e, em 2020, lança o álbum "Canções D'Além Mar", em plena pandemia, que lhe valeu o Grammy Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira. O álbum é uma homenagem aos grupos e cantores portugueses como Sérgio Godinho, Pedro Abrunhosa, Fausto, Zeca Afonso, Rui Veloso, Vitorino, entre outros.
Entre hoje, amanhã e sábado apresentará três espetáculos, "Na Ponta da Língua", onde dará a conhecer ao público grande parte destas canções, bem como as suas músicas mais icónicas e que o público não esquece.
SAPO Mag - Vem a Portugal celebrar 26 anos de carreira. Falamos de carreira discográfica, mas de música são quase 40…
Zeca Baleiro - É verdade. O primeiro disco foi há 26 anos e é aquele marco na carreira do artista da música, mas eu não gosto de desprezar os anos passados, que eu chamo de “subterrâneo”, de estaleiro, que é o tempo em que estava a preparar e a criar repertório pessoal. Muitas das músicas que hoje eu toco obrigatoriamente nos concertos, foram compostas nesse período.
O Zeca começou aos 17 anos como produtor musical de um teatro infantil, depois teve 12 anos a tocar em bares, e sítios pequenos e a produzir para outros. As coisas levam tempo e hoje em dia as pessoas querem que tudo aconteça no imediato…
É a ansiedade. Eu vejo pela estrada muitos grupos, novos cantores e compositores que querem mostrar o seu QR code (agora já nem pen é!) com muita ansiedade de chegar a algum lugar e perguntam “o que é que eu faço?”. Como se houvesse um segredo, não existe segredo nenhum. Acho que também tem que ver com o mundo que estamos a viver em que a fama é um valor maior do que o talento. Ter muitos seguidores numa rede social é mais importante do que ter quem ame a sua música, quem entenda a sua música, quem admire a sua música, quem acompanha com fervor e com o mesmo amor. É um tempo estranho que estamos a viver.
Costuma dizer que é preciso viver. Talvez o segredo seja a “vida”…
O que eu aconselho é isso: vai viver, você só tem 17 anos, vai viver, vai namorar, vai amar, vai se apaixonar, vai se enganar um pouquinho, se desenganar, se desiludir, vai beber umas cachaças ali no bar, umas vodcas baratas e aí certamente terá matéria-prima para compor. É difícil compor e por isso é preciso viver, ir para a rua e observar as pessoas e o que nos rodeia. É na rua onde as coisas acontecem, onde a vida pulsa, onde a vida acontece, e é isso que inspira.
Uma das suas canções de grande sucesso, "Telegrama", é uma música muito visual, de “rua”: “a top model magrela da passarela”, “o português da padaria”, “oferecer as flores ao delegado”, são estereótipos, coisas do dia-a-dia e triviais. São a sua fonte de inspiração?
Sim. Eu digo sempre que o compositor é um cronista, é um cronista do seu tempo, da sua época, do seu país, da sua cidade. Por exemplo, essa música é, como diz um amigo, quase perigosa. A letra dela é quase perigosa. Então é um milagre que ela se tornou um mega hit aqui no Brasil. Ela tem quase 100 milhões de streamings no Spotify, é uma loucura. Todos os cantores da noite, de bares, cantam essa música. Já teve várias regravações em samba, em forró, em rap, funk, reggae; mas a letra é perigosa, é provocadora: provoca a top model, provoca o paulistano, provoca a banda de rock; só o português da padaria é que não é provocação, é homenagem mesmo. Eu moro há 32 anos em São Paulo e o português da padaria é uma instituição São Paulistana porque 80% dos donos da padaria são de origem portuguesa. (risos)
O que podemos esperar deste espetáculo “Na Ponta da Língua”, que tem o primeiro concerto hoje em Coimbra?
É um espetáculo com um grupo pequeno. Sou apenas eu; o Tuco Marcondes, que toca violões e guitarra e o Lui Coimbra, que é um violoncelista. E vai ter a participação muito especial do Manuel Paulo Felgueiras, que é pianista, foi pianista da Ala dos Namorados e que é um grande amigo que eu conquistei entre os músicos portugueses. Acaba por ser um espetáculo em formato de recital, mais introspetivo e não é um espetáculo de banda explosivo, embora eu adore fazer isso também.
Estar mais sozinho no palco é mais desafiante?
É assim; este tipo de espetáculo mais introspetivo expõe-te mais, inclusive as falhas, que também as há! (risos) Num espetáculo com banda, mais rock e ruidoso, certas coisas são relevadas. Mas este tipo de espetáculos também são bons, porque aumenta o grau de concentração, aumenta o grau de emoção e de entrega. Eu gosto de todos os formatos, cada um traz uma coisa diferente, uma energia diferente, um impacto diferente no público também.
Estes concertos têm um chapéu, algo que os une, a temática da mobilidade e cidadania e hoje é exatamente no dia da inauguração da Casa da Cidadania em Coimbra. São temas importantes?
Olha, a cultura é um dos maiores agentes da cidadania. Cultura e educação são os dois estandartes. Portugal tem resolvido melhor os seus problemas de educação, mas no Brasil o índice de analfabetismo ainda é muito grande. Há discrepâncias muito grandes entre as regiões, o sul, o sudeste, o norte, o nordeste do país. É um enredo político, uma falta de vontade política para manter as pessoas cada vez mais na ignorância. Isso aí é histórico. Então eu acho que só se conquista, de fato, a cidadania através destes dois vetores: cultura e educação e o Brasil tem um grande património cultural e acho que essa relação entre Brasil e Portugal, através da língua, pode ser muito frutífera. Embora hoje haja muita xenofobia também em Portugal, que é um cenário do mundo todo. É um retrato de uma era, o que é lamentável. Mas acho que só temos a ganhar culturalmente.
Sobre esta paixão que tem pela música portuguesa. O primeiro contacto que tem é através da família da sua mãe que tem raízes portuguesas, certo?
É. A minha mãe tinha umas tias com quem eu fui morar, durante algum tempo, na minha infância. Fui para São Luís do Maranhão, que dizem ser a cidade mais portuguesa do Brasil por causa dos azulejos. E eram três tias: a Leonila, a Verónica e a Tia Dica e julgo que eram netas de portugueses, da vila da Ericeira. Elas eram muito portuguesas e tenho memória principalmente da minha tia Verónica, que era a mais musical delas, a ouvir fado, sobretudo Amália Rodrigues…
Na altura era o que mais se ouvia…
Sim, fado e mais tarde Roberto Leal, que era quase mais brasileiro do que português. Tenho o maior respeito por esses artistas desse extrato mais popular, mas talvez ele tenha, sem querer, prestado um desserviço que foi mostrar só o Portugal mais folclórico. Acho que ficámos aqui com um grande gap, sem conhecer a geração do Zeca Afonso, do Fausto Bordalo, do Sérgio Godinho, do Vitorino, que são fundamentais para Portugal, que seriam o equivalente à MPB brasileira, Chico, Caetano, Milton e tal.
Mas estes só conheceu mais tarde?
Sim. Tinha umas amigas que visitavam Portugal e trouxeram-me cassetes de música e aí eu conheci Godinho, Fausto, Vitorino, Jorge Palma…
E tem memória da primeira música portuguesa pela qual se apaixonou?
(trauteia) Ó Laurinda, linda, linda. Ó Laurinda, linda, linda… achava isso lindo! [música popular interpretada por Vitorino]
E aqui começa este amor pelo cancioneiro português…
Sim e eu fiz este disco [Canções D’Além Mar] para comtemplar essa geração. Tenho amigos que até reclamaram comigo e perguntaram por que é que não gravei também temas da malta mais jovem. Quem sabe não venha um volume dois, mas para já precisava de homenagear, pagar tributo aos grandes que me fizeram ingressar neste universo da música portuguesa.
E se fizesse um volume dois com músicas de artistas mais jovens, quem seriam? Três nomes a incluir…
Eu gosto muito do Tiago Bettencourt, acho muito interessante; o Samuel Úria, com quem eu já falei e tenho de falar uma mulher não é? (risos) Luísa Sobral é muito interessante. Tenho um amigo que me disse “Poxa, este disco só tem homens!”, mas eu ouvi muitas mulheres: ouvi Amélia Muge; Né Ladeiras, agora também ando a ouvir A Garota Não, com quem também já comecei a falar; a Cátia… devagarinho eu vou conhecendo também esta nova cena e traçando planos para quem sabe um projeto futuro.
Em 1998 tocou pela primeira vez cá em Portugal. Foi dessa vez que cantou com o Pedro Abrunhosa, o primeiro músico português com quem atuou?
Não, foram duas situações. Eu fui a primeira vez a Portugal a um festival de música brasileira, em Vila Nova de Famalicão. Eu toquei na noite de Gilberto Gil, na noite anterior tinha tocado Daniela Mercury com Olodum. O meu nome estava a surgir, as pessoas não me conheciam ainda muito bem, ainda só tinha lançado um disco, mas fizemos um concerto muito interessante, num lugar bonito e estava uma noite muito fria. Essa foi a primeira vez, em 1998, mas com o Abrunhosa foi aqui no Brasil em 2000, num projeto de celebração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, onde houve vários eventos culturais e um deles juntava artistas brasileiros com artistas portugueses e africanos-portugueses. Eu fiz com o Pedro Abrunhosa, já conhecia o trabalho dele também, e foi incrível, foi um concerto incrível e ele foi o primeiro artista português com quem eu dividi o palco.
Mas também já o fez com o Sérgio Godinho…
Sim, aí a convite dele. Ele estava de férias com a família, assistiu a um concerto meu em Salvador e no fim foi falar comigo e apresentou-se “Sou o Sérgio Godinho, não sei se você me conhece" e eu claro não é? "Pô, Sérgio, claro que conheço. Você é uma lenda viva". Trocámos contatos e ele convidou-me para tocar com ele na festa do Avante no ano seguinte, 2001. E foi a primeira vez que atuei para um grande público em Portugal.
E nunca mais parou….
Entre 1999 e 2005 eu fui muitas vezes tocar a Portugal, e mais do que uma vez num ano. Os meus discos passaram a ser lançados em paralelo, saiam no Brasil e em Portugal, e isso foi aumentando um pouco mais a minha popularidade. Tanto fiz concertos em casas muito grandes como o Centro Cultural de Belém, Coliseu do Porto, como também depois fazia pequenas vilas e cidades no Alentejo, Douro e só este meu périplo por esse Portugal “profundo” daria um livro. Vivemos histórias muito engraçadas; as pessoas não me conheciam e o meu cartaz chegou a estar divulgado como "José Caballero", como se fosse um toureiro espanhol (risos) Mais tarde também gravei uma canção bónus em português, a versão do “Frágil”, do Jorge Palma, num disco chamado “Baladas do Asfalto e Outros Blues” e acho que aí começou o sonho de fazer este disco tributo.
Muitos destes cantores - José Afonso, Fausto, Sérgio Godinho, Jorge Palma – podemos dizer que são de intervenção, ou seja, cantores que através da música expressam problemas sociais e políticos. O Zeca Baleiro identifica-se, porque também o é?
Sim, muito, profundamente. À minha maneira também sou. Claro que o cenário político e social hoje é muito diferente da época, a própria situação política também era diferente. Talvez eles possam ser comparados mais adequadamente a compositores como Chico Buarque, Gonzaguinha, João Bosco, que enfrentaram com a sua música, a ditadura militar no Brasil. Hoje as lutas são outras, os combates são outros, mas eu considero-me como se diz aí em Portugal, um artista de intervenção. A gente tenta interferir, influenciar no pensamento do público, com as nossas ideias que são ideias mais à esquerda, que são ideias mais libertárias, mais progressistas. A situação política no Brasil continua delicada, apesar de termos um governo mais justo e mais razoável neste momento, mas “o jogo não está ganho”, fazendo uma alusão futebolística. Aqui o neofascismo avança a passos largos e a luta permanece. E a música, com a ajuda das redes sociais, é uma ferramenta muito importante para consciencializar o público.
E a escolha das 11 músicas deste álbum foi uma escolha só do Zeca?
Foi só minha mesmo. Foi um projeto muito solitário nesse sentido. Eu selecionei cerca de 80 músicas, ouvi muita coisa da discografia portuguesa e acabei por chegar a estas 11. O disco depois foi premiado com um Grammy latino [Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, em 2021] eu resolvi lançar mais dois bónus: o “Homem do Leme”, dos Xutos & Pontapés, e “Inquietações”, de Zé Mário Branco, que é um compositor que eu adoro, mas que na lista final ele acabou por ficar de fora. Quando eu fizer o vinil, não sei como será, porque talvez não caiba tudo no vinil e tenho que excluir uma ou duas do original. Vai ser um tormento (risos)
Não vai ser fácil…
Nada. Já esta escolha foi difícil, porque, por exemplo, do Jorge Palma e do Godinho eu conheço toda a discografia e adoro tudo, acho incrível. Por exemplo, do Pedro Abrunhosa, o "Tu Não Sabes" virou um pequeno sucesso aqui no Brasil. Eu toco nos concertos brasileiros porque ela entrou na banda sonora de uma novela da Globo, a “Travessia”. Havia um núcleo do enredo que estava em Portugal e cada vez que havia essa passagem para Lisboa a música entrava e as pessoas já conheciam e já cantavam. As músicas do Godinho também já passam em algumas rádios, então já fiz algumas conquista, apesar do disco ter sido feito com muita despretensão.
Este é um disco mais para Portugal ou para o Brasil?
Fiz mais para o Brasil, para o brasileiro conhecer a música portuguesa e deu alguns frutos.
No Brasil nunca se consumiu tanto Portugal, como aqui em Portugal se consumiu o Brasil, principalmente na música. Por que é que isso acontece?
Acho que houve pouco investimento nos anos de ouro do mercado fonográfico, 70/80; faltou também "desfolclorizar" a música portuguesa e mostrar que havia produções interessantes. O Xutos & Pontapés ainda fizeram colaborações com os Titãs, mas sempre quando os Titãs iam a Portugal; os Delfins também tentaram, mas nunca houve uma troca intensa e acho que sempre houve uma dificuldade com essa coisa da língua; mas por outro lado a literatura portuguesa sempre foi muito consumida: Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, mais tarde José Saramago e valter hugo mãe. E ainda se lê muita literatura portuguesa, mas na música realmente existe um bloqueio…
E o que é que ainda o deixa à “flor da pele”?
Para o bem ou para o mal? (risos)
Para ambos…
Estar apaixonado por um trabalho ou por uma causa é uma coisa que me deixa à flor da pele. Ultimamente, o que me deixa a flor da pele para o lado mau é o ruído dos lugares públicos. As pessoas ligam os telemóveis em volumes altíssimos, começam a ver vídeos, músicas, mensagens… é uma falta de sossego e eu prezo muito o silêncio. Talvez porque trabalhe com música, o silêncio é muito importante, porque é no silêncio também que a criação se dá, que se consegue descansar e novas ideias podem surgir, então este ruído todo dá-me vontade de apertar o pescoço de algumas pessoas, mas tudo bem. Isso depois passa. (risos)
Portugal não roubou só o seu coração através da música, também roubou agora um bocadinho do seu coração, o seu filho está cá. Ele deu-lhe um Portugal que não conhecia?
Sim, ele tem-me atualizado e mostrado algumas coisas sobre a situação política em Portugal e esta coisa lamentável que está a acontecer com os brasileiros lá, questões de xenofobia; e também como está a estudar jornalismo cá e com interesse em jornalismo desportivo, também vou sabendo coisas do futebol português…
Tem um clube com que simpatiza cá em Portugal?
É difícil falar, mas sou simpatizante do Sporting, porque acabo também por ter muitas amizades sportinguistas. Talvez também pelas cores, eu coleciono camisolas de clubes de futebol; tenho mais de 400. Quando aí estive também comprei todas as que havia disponíveis desde o Porto ao Beira-Mar para a minha coleção. Você também é do Sporting?
Não, não, não.
Ah! É benfiquista. A camisola também é linda! (risos)
Falámos muito do álbum da “Canção D’Além Mar”, a ode à música portuguesa, mas também vai apresentar músicas do seu reportório?
Sim. Já não vou a Portugal há mais de cinco anos, suponho que o público que eu tenho aí, que é um público razoável, esteja com saudades das minhas canções, então eu tenho que incluí-las no concerto, mas selecionei algumas canções desse disco [Canção D’Além Mar] para também o trazer à tona, porque também foi lançado em plena pandemia, e não foi lançado em suporte físico, apenas nas plataformas digitais, então eu vou contemplar um pouquinho desse disco. Haverá algumas surpresas e alguns convidados também.
Para terminar, e de forma metafórica, o que está sempre na ponta da língua do Zeca Baleiro?
Tá boa! (risos). Estará sempre uma palavra de bom humor, porque eu acho que o bom humor é fundamental e uma pitada de sarcasmo, que sem ele a gente não vive também.
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