
Costuma dizer-se em terras lusas que o Porto é um gémeo mais bem-disposto da capital inglesa. Coincidência ou não, os muitos ingleses que viajaram até ao Porto em busca da Primavera trouxeram consigo um vento capaz de fazer tremer um Abominável Homem das Neves menos precavido, fazendo da ideia de um festival abençoado pelo sol uma enganadora fotografia de folheto.
Aos primeiros acordes, os Merchandise ainda nos fizeram acreditar que estaríamos perante uma versão rejuvenescida dos The Dears, mas o sentimento de afeição durou pouco. Guitarras atravessadas pelo post-punk britânico, mas sem conseguirem passar de um eco repetitivo.
Pensem nuns Cure sem barba e com um ar muito lavadinho, tendo Lloyd Cole ao leme do microfone cantando ainda a medo, e terão uma ideia do espírito que atravessa os Wild Nothing: uma linha melódica que exala perfume dos anos oitenta, uma base rítmica a lembrar a irreverência e sobretudo a despreocupação da adolescência. A banda tem a matéria-prima para fazer algo de único, mas falta-lhe ainda descobrir um rasgo criativo que a possa tornar única. Morninho.
Ter-se-ão as Breeders divertido mais que o público que assistiu à celebração do lançamento de “The Last Splash”, que já foi além da maioridade e completou vinte anos? Provavelmente sim. Não por falta de empenho da formação que gravou o disco e esteve ontem reunida em palco - Kim Deal, Kelley Deal, Josephine Wiggs e Jim MacPherson –, para tocar o disco de uma ponta à outra, mas talvez por falta de desconhecimento de um disco que, então, foi um assomo de irreverência de um Girrrl Power que soava a uma versão pixiana de saias e T-Shirt meio amarrotada. Não faltaram “Cannonball”, “Invisible Man”, “Divine Hammer” ou “Saints”, revelando todo o ADN das Breeders: uma linha de baixo empolgante, guitarras em êxtase, uma bateria que vive de acelerações rápidas e ávidas tentativas de recuperar o fôlego. Sente-se aqui o peso dos anos, mas uma certa nostalgia de quando em vez nunca fez mal a ninguém.
Se houvesse um título literário que pudesse ilustrar a passagem dos Dead Can Dance pelo Primavera, cruzando-o com um delírio cinéfilo, poderia ser qualquer coisa como “As Mil e uma Noites que vieram do frio”. Lisa Gerrard e Brendan Perry, por entre ritmos tribais, arranjos dedicados e mantras de curta duração, levaram-nos numa viagem ao Médio Oriente onde, do roteiro, não foram esquecidos alguns clássicos. Tivesse a noite sido mais quente e, provavelmente, haveria muito boa gente a dançar de tronco nú, numa procissão dançante tentando descobrir a gruta de Ali Babá e os seus quarenta funcionários.
Normalmente dividimos o mundo nocturno de fechar os olhos em sonhos e pesadelos, facilmente traçando uma fronteira entre o bem e o mal. No caso de Nick Cave & The Bad Seeds não há lugar para contas tão fáceis. Isto porque Nick Cave e as sementes malignas nos habituaram, ao longo dos anos, a gostar de pesadelos, fazendo com que o negro fosse uma das cores que ganhou a preferência da trincha que pinta os sonhos de cada um que o segue como um profeta designado. Dizer que o concerto de ontem foi assombroso corre o sério risco de se tornar redutor. Numa curta viagem que durou pouco mais de uma hora, escutaram-se alguns dos temas do novo disco - “Push The Sky Away” - mas sobretudo velharias de leilão: “The Mercy Seat” recorda-nos a sábia máxima do “olho por olho, dente por dente”; em «Whiping Song» as lágrimas são enxutas pelo calor e o abraço de um violino; «From Her To Eternity» lembra os tempos em que as palavras de Cave eram escritas com sangue e movidas pela raiva; «Red Right Hand» é um tango onde o vermelho foi trocado pelo negro, servindo para Cave atirar uma boca ao uso de telemóveis durante os concertos; «Stager Lee», apenas um dos momentos épicos, é uma intensa canção de engate que deu para o torto.
Nick Cave passou a maior parte do concerto em suspensão sobre as grades, apertando todas as mãos que se lhe esticavam, pregando que o fim está próximo mas, talvez, lhe consigamos passar a perna. Com muita sensualidade, uma grande dose de ira e uma voz que vai da doçura à raiva, Nick Cave presenteou-nos com um concerto que dificilmente terá concorrente nesta edição do Primavera. É certo que ainda faltam os Blur e outras jovens promessas, mas Cave elevou a fasquia para um patamar aonde só os anjos caídos conseguem chegar. Uma palavra para os Bad Seeds, que encarnam na perfeição o papel de figurantes na imensa tragédia humana encenada por Cave. Assombroso.
Ainda houve tempo para navegar com os Deerhunter, entre o espírito pop de “Halcyon Digest” o o mais travesso – e recente - “Monomania”, e para um bonito momento de sedução protagonizado pelo menino James Blake, um crooner da electrónica, um mago dos efeitos e distorções vocais que, cada vez mais, sai da sombra para revelar uma voz inconfundível. A electrónica encontrou aqui a sua veia amorosa.
Texto: Pedro Miguel Silva
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