Com a interpretação de Smile (tema originalmente cantado por Nat King Cole) como banda sonora, foi exibido um pequeno aperitivo de “Mariza no Palco do Mundo”, um conjunto de quatro documentários sobre as digressões internacionais da fadista, regressada este mês aos palcos nacionais depois de quase um ano de ausência.

A atenção manteve-se na tela de projeção, com o jogo de luz a desvendar a silhueta de José Manuel Neto, na guitarra portuguesa, até os primeiros versos de Promete Jura irromperem da plateia, para surpresa de todos. Mariza subiu então ao palco e, seguidamente a Na Rua do Silêncio, onde continuou o passeio por “Fado Tradicional” (2010), disco que marcou o regresso ao fado de raízes mais clássicas, agradeceu o apoio e o carinho sentidos ao longo do período de afastamento - “sei que estive quase um ano longe mas vocês estiveram sempre próximos”.

“Devagar se vai ao longe/ E eu bem vou devagarinho”, reza Fado Vianinha, que Mariza reconheceu como a melhor descrição para este percurso dedez anos, em que passou de ilustre desconhecida a atual embaixatriz do fado. Dançaricante e expressiva, em tom namoradeiro, cortejou o público com As Meninas dos Meus Olhos, fado alfacinha que, curiosamente, diz ter conhecido através de uma fadista do Porto, Beatriz da Conceição. Depois de Já Me Deixou, Beijo de Saudade virou o navio do fado rumo às sonoridades africanas e às raízes da cantora, nascida em Moçambique. Mariza rodopia e bamboleia-se ao som da melodia, com um cenário de mar subtilmente projetado nas faixas de tela espalhadas pelo palco.

Às primeiras notas de Barco Negro, foram imediatas as palmas transformadas em secção rítmica, que se souberam calar nas alturas certas, onde o poderio coube à voz e à palavra, intensificada. Pelo bom comportamento, o público foi convidado a juntar-se à cantoria, num momento de comunhão acrescida, resultante numa das maiores salvas de palmas da noite.

Acabado Meu Fado Meu, a cantora saiu do palco, a pretexto de um instrumental para apresentação do trio de cordas que a acompanha. José Marino de Freitas na viola baixo, Diogo Clemente na guitarra e, José Manuel Neto na guitarra portuguesa deram mostras de indubitável talento, numa peça onde todos puderam brilhar e cujo trabalho individual foi sublinhado pelo jogo direcional da iluminação.

De novo em cena, Mariza senta-se ao pé da guitarra portuguesa, que denuncia Chuva, canção imediatamente reconhecida pelos presentes que não resistem a manifestar entusiasmo. “Podem começar a cantar, que já percebi que sabem o que é”, pediu a fadista, ao que as vozes do público acederam, sem hesitação. Na continuação lógica de um caminho trilhado por temas tão fortes, os passos estenderam-se por Cavaleiro Monge, poema musicado de Fernando Pessoa, com a extensão vocal da fadista a impregnar-se sala fora. Dona Rosa serviu de pretexto a que lhe fossem deixar flores em cima do palco, e daí partiu para Meus Olhos que Por Alguém, fado menor do Porto, um poema de António Botto.

Do Porto, fugiu-se num instante até Lisboa, sem pagar portagem, numa antecipação dos santos populares. Visitaram-se os bairros de Alfama e da Madragoa (Rosa da Madragoa), em passo de marcha, numa pequena avenida imaginária transplantada para o palco do coliseu.
Mais uma Lua e Primavera, fados mais sóbrios, sucederam-se, num intervalo ao clima de bailarico, que ressurgiu com toda a força ao som de Rosa Branca, cantado em colaboração com o público, um pouco trapalhão, mas cheio de boa vontade. De braço dado com a cantora, fomos ainda levados à Feira de Castro, tema que se alongou com o solo de bateria de Vichy Marques.

“Como sabem, cresci numa taberna, na Mouraria”. Assim há de ter começado a história de amor entre Mariza e o Fado, e assim começou a história que contou em palco, sobre o privilégio de ter crescido entre as grandes vozes, consequentemente grandes professoras, do fado. Deste modo, “não queria ir embora sem cantar um fado que o Fernando Maurício eternizou”: Boa Noite,Solidão, numa versão avassaladora, deixou o público rendido, numa ovação demorada e em pé. Mariza cresceu com o fado, mas soube, também, engrandecê-lo.

Apesar da promessa, a noite não chegara ao fim. Mariza desceu à plateia e, sem microfone, brindou-nos com Lavava, no Rio Lavava, tema que não costuma cantar publicamente. Um momento de candura, na voz suavizada e mais que autossuficiente, onde só se lamenta o intimismo quebrado pelo som dos disparos das máquinas fotográficas e dos telemóveis. E enquanto percorreu a plateia, que foi saudando, Ó Gente da Minha Terra foi-se construindo, em síntese da visceralidade com que Mariza canta o fado, e da expressividade demolidora que a todos comove.

Quando, finalmente, as palmas cessaram de ressoar, a festa continuou, num regresso a Rosa Branca, com o público a ignorar os lugares sentados, pronto para o baile, onde tudo foi permitido “menos dançar em cima das cadeiras e arrancar o cabelo dos vizinhos”.

O fim, inevitável, lá acabou por chegar. O pano caiu e, aos poucos, o coliseu foi sendo abandonado, com sorrisos estampados nos rostos e um orgulho visível nessa arte tão portuguesa, que é a arte de cantar e de sentir o fado.

Confere o alinhamento do concerto

Smile
Promete Jura
Na Rua do Silêncio
Fado Vianinha
As Meninas dos Meus Olhos
Já Me Deixou
Beijo de Saudade
Barco Negro
Meu Fado Meu
Instrumental
Chuva
Cavaleiro Monge
Dona Rosa
Meus Olhos que Por Alguém
Alfama
Rosa da Madragoa
Mais uma Lua
Primavera
Rosa Branca
Feira de Castro
Boa Noite Solidão

Lavava no Rio, Lavava
Ó Gente da Minha Terra

Rosa Branca

Texto: Ariana Ferreira

Fotografias: Filipa Oliveira