A cortina abriu para revelar uma Maria Bethânia de costas voltadas que, num rompante, se apressou para a berma do palco, acalmados os aplausos de boas-vindas, e inaugurou, com Roda Viva, o passeio pela obra do “amigo” Buarque. De canção em canção, num desfilar de temas colados uns aos outros e sem margem para grandes pausas, Bethânia encarnou, munida com um aparelho interpretativo de excelência, as personagens das histórias de Chico Buarque de Hollanda.

Dotada de toda uma dramaturgia emocional contida nos gestos e nos traços do rosto, a intérprete excede os limites da narração, emprestando voz a homens e mulheres, até quase ao mesmo a tempo, como no diálogo contraposicionado entre Cotidiano e Sem Açúcar. Através das palavras de Chico, Bethânia assume, na primeira pessoa, a pele de mulher abandonada, como o caso de Joana, em Gota de Água; insurge-se e tenta lograr as repressões da ditadura, como em Cala a Boca, Bárbara e Cálice; traz contornos à conversa entre duas crianças inocentes, através da adaptação enternecedora de João e Maria; desmultiplica-se, como se de muitas se tratasse, ou muitas pudesse conter no jeito tão próprio e tão pessoal de cantar.

Sem Fantasia, dueto partilhado com o autor, surge projetado numa gravação, num instante de grande ternura, com a cantora sentada de olhos voltados para o ecrã. Uma boa intenção que não correu como o pretendido, com o som demasiado baixo a retirar intensidade ao momento. Vicissitudes técnicas que não se fizeram sentir apenas por aí, com Bethânia a queixar-se que não se conseguia ouvir.

Com um álbum novo acabado de sair, resistir à tentação em mostrá-lo seria tarefa impensável. Desta forma, Maria Bethânia resolveu brindar-nos com “uma coisa fresquinha”, que é como quem diz, dois temas do mais recente “Oásis de Bethânia”, ambos escritos por Roque Ferreira. A Casablanca seguiu-se Fado, acompanhado à viola caipira e introduzido por um excerto do “Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, heterónimo de Fernando Pessoa.

Por entre os mais de 30 temas cantados esta noite, houve ainda pretexto para uns passos de dança, num bloco de samba improvisado em cima do palco, liderado pela cantora. O mote, dado por Noite dos Mascarados, ganhou outro vigor, com Chico Buarque da Mangueira (tema homenagem) já em jeito de remate, finalizado em concordância com o abraço cúmplice projetado, na repetição não sonorizada do vídeo de Sem Fantasia.

Aplaudida em reverência, Maria Bethânia regressou ao palco para mais dois encores, muitos galanteios e até um banho de pétalas lançadas por uma fã. A Banda, em tom de festa, ditou o fim do percurso por Buarque, na voz da cantora que mais o terá gravado e interpretado. O último adeus fugiu à temática, porque “Chico deixa fazer as canções que eu quero. Chico perdoa”. E, a julgar pelo entusiasmo manifestado na plateia ao som das primeiras notas de O que É, o que É, o público do coliseu também.

Confere o alinhamento do espetáculo:

Rosa dos Ventos
Baioque
Maninha
Roda Viva
Cala a Boca, Bárbara
Tiras as Mãos de Mim
Cálice
Gente Humilde
Apesar de Você
Gota d'Água
Sonho Impossível
Sem Fantasia (vídeo)
Minha História
Beatriz (instrumental)
Terezinha
Casablanca
Fado
Cotidiano
Sem Açúcar
João e Maria
Quem te Viu, Quem te Vê
Noite dos Mascarados
A Rita
Olhos nos Olhos
Samba e Amor
Tatuagem
Todo o Sentimento
Mambembe
Ela Desatinou
Chico Buarque da Mangueira

A Banda

O que É, o que É

Texto: Ariana Ferreira

Fotografias: Ana Limão