
Ainda a estabilizar os batimentos cardíacos – é assim que a maioria das pessoas que se encontrava ontem no Lux, em Lisboa, deve estar neste momento. Sim, porque eram muitas as caras expectantes que podíamos ver na já longa fila, antes de o espectáculo começar.
Casa cheia para receber o jovem e talentoso músico americano, que já conquistou um séquito fiel no nosso país e que, mesmo com as voltas trocadas, seja no Ritz Clube (sala onde estava previsto tocar inicialmente) ou no Lux, o seguem incondicionalmente para qualquer lado, hipnotizados pela sua voz sedutora, embriagados pela sua música singular, ímpar, única e restantes adjectivos sinónimos do factor diferenciador e de destaque que esta assume dentro do panorama do soul e do jazz atual.
Em digressão pela Europa a promover o seu mais recente álbum, “No Beginning No End”, José James presenteou-nos com três concertos, passando primeiro por Guimarães, depois pelo Porto, chegando, por fim, à capital, Lisboa. Vai deixar saudades neste país que igualmente já o conquistou, tal como o mesmo fez questão de referir num discurso descontraído, no qual elogiou a nossa maravilhosa gastronomia, os nossos bons vinhos e as nossas “beautiful ladies”.
Descontração, coolness, soulful… - algumas palavras, insuficientes contudo, para descrever a facilidade com que este músico entra em palco e brinca com a música, fazendo o que quer dela e de nós. Mas se pensam que nesta noite só houve uma estrela em palco, estão muito enganados, pois foi toda uma constelação que nos deixou extasiados, taquicárdicos, felizes. José James avisou – “neste palco somos todos líderes” – e, de facto, assim foi. Foi notável, ao longo de todo o concerto, o insistente reconhecimento, bem como admiração, por parte de José perante a sua banda, que também faço questão de apresentar: no baixo, Solomon Dorsey, na bateria Richard Spaven, no trompete Tokuyo Kuroda e no piano Kris Bowers, mais conhecido por “Ladies Love”.
Mas vamos dar início ao espectáculo e já continuamos a nossa conversa. O concerto começou de forma muito… suave. Aliás, suavidade/intensidade, embora parecendo antagónicas, foi algo que pudemos sentir em todo o concerto, como se estivessem de braço dado. Num jam muito calmo e descontraído, a banda abriu caminho para que, já embalados pelo groove que nos iria acompanhar durante a noite toda, pudéssemos receber o protagonista num caloroso e esperado aplauso. José James entrou em palco de óculos escuros, com aquela mistura inebriante de charme e descontracção que tão bem o caracteriza, e inicia o concerto com a mesma música que abre o álbum – “It’s All Over Your Body”. E pronto, aí começou a viagem, um transe em que muitos entraram e que só terminou cerca de duas horas e meia depois. Caras vidradas no palco, outras de olhos fechados.O objectivo, contudo, o mesmo – absorver toda e cada uma das notas que se faziam tocar, cantar e encantar naquela sala.
Na sequência do seu primeiro tema, chega-nos o primeiro cover do seu grande ídolo, Marvin Gaye: um cheirinho de “Let’s Get In On”, completamente sodomizado ao estilo de José James, como, por norma, acontece com todos os seus covers,quetornouo tema quase irreconhecível, não fosse esta canção impossível de não reconhecer. Mudamos de registo, lentamente, primeiro com a bateria, depois com o baixo, mas reconhecemos, ainda assim, de imediato, a música que aí vem:“Blackmagic”, o tema que também dá nome ao seu segundo disco e com qual “in the darkness, in the darkness, we made love”.
“Make love with music”, assim nos pediu José James, assim o fizemos, inevitavelmente, irremediavelmente, prazerosamente. Mas batam palmas, muitas palmas, pois vem aí “Sword & Gun”. José James pega na sua viola e entram na sala os sabores e os aromas do Médio Oriente. Estamos quentes, cada vez mais quentes e, da mesma forma que iniciamos a música, assim a acompanhamos até ao final, com palmas, muitas palmas. Mas é na música seguinte, “Trouble”, que temos a confirmação -já estamos completamente “agarrados”.
Começam os primeiros solos… e o que dizer? Não houve apenas um protagonista nessa noite, mas cinco. O talento de cada músico ontem presente em palco é estonteante. Seja brilhando individualmente, seja em conjunto, a qualidade da música tocada é fora de série. Um factor também decisivo para o seu sucesso é a cumplicidade tremendamente visível que se verifica em palco. Acredito que qualquer amante de música tenha delirado com este concerto, mas não quero imaginar o que sentiu a pessoa cuja paixão é o jazz.
Mas adiante, porque ainda há muito concerto pela frente. Após uma breve passagem por “Love & Happiness” (Al Green), José faz-nos mais um tributo a uma lenda do soul, desta feita, Bill Withers. Começamos com a versão terrivelmente suave de “Ain’t No Sunshine”, a qual nos presenteia com um solo de piano magnífico por parte do “young genius”, o segundo apelido de Kris Bowers, pelo qual José James carinhosamente grita quando sai do palco enquanto o seu amigo, efectivamente genioso, continua a tocar. De seguida, "Grandma's Hands" começa a tocar e entramos no primeiro loop vertiginoso da noite, passando pelo mítico “No Diggity” (Blackstreet) e terminando novamente em “Ain’t No Sunshine”.
Fazendo referência ao seu compositor, Robert Glasper, é a vez de “Vanguard”, na qual o baterista Richard Spaven, embora mais tímido, mostra-nos que não fica, de todo, atrás do resto da banda. Mas voltemos novamente à década de 70 e a Marvin Gaye, a quem José James tanto gosta de ir beber inspiração, com os temas “Mercy. Mercy Me” e “What’s Going On”. Todavia, foi com o segundo cover de Al Green que a casa foi ao baixo, ou melhor, fomos todos ao céu. “Simply Beautiful” foi de uma beleza, uma delicadeza, daquele tipo de momentos em que apetece rir e chorar ao mesmo tempo. E o trompete? Já vos falei da forma impressionante de tocar do Sr. Tokuyo Kuroda? Uma preciosidade naquele conjunto, uma pérola, a verdadeira cereja no topo do bolo!
“Come to my door”, com o seu flow descontraído, permite-nos recuperar o fôlego. A Emily King que se sinta descansada, pois foi muito bem substituída pelo baixista, Solomon Dorsey, cujo talento não se fica só pelas mãos. Espero que os mais atentos tenham reparado na passagem que José fez no final da música, com Miss Lauryn Hill e o seu “Tell Him”.
Entramos na reta final, resta-nos “Do You Feel”, o apogeu soul e jazz da noite, onde todos tiveram direito ao seu solo (e que solos, meu Deus!) e, para terminar, o único encore da noite, mas que valeu por um, dois, três… os que fossem! José James e a sua banda regressaram para “Park Bench People” (do seu primeiro álbum, “The Dreamer”), no segundo loop alucinante da noite. E aqui houve tudo aquilo que José James gosta de fundir: hip hop, soul e jazz. Pelo meio, a inesperada “Rape Me” – cover da banda que marcou a sua adolescência (Nirvana); no final, o regresso de “Ain’t No Sunshine”. Neste encore, o instrumento-estrela foi a voz incansável de José James, impressionante. Como se tivesse um sintetizador incorporado na sua garganta. Elástica, hipnótica, perturbadoramente viciante.
Palmas, muitas palmas para este cantor e para asua banda, que se despedem com vénias em palco. Foi um prazer estar com eles e convosco. Não sei como está o vosso, mas o meu coração ainda não voltou ao normal.
Alinhamento:
01. It’s All Over Your Body
02. Let’s Get It On
03. Blackmagic
04. Sword & Gun
05. Trouble
06. Ain’t No Sunshine / Grandma's Hands
07. Vanguard
08. Mercy. Mercy Me / What’s Going On
09. Simply Beautiful
10. Come to my Door
11. Do You Feel
12. Park Bench People / Rape Me
Lucélia Fernandes
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