"Vocês são incríveis por nos aturarem a um sábado à noite!", agradeceu Tó Trips a poucos minutos do final da hora e meia de atuação centrada em "Lisboa Mulata", mote para a passagem dos Dead Combo pelo Teatro Municipal de Almada. A chuva de aplausos que obteve como reação sugeriu, contudo, que o público que quase esgotou a sala, em vez de um espírito de sacrifício, partilhou um ambiente de entusiasmo - embora marcado por uma concentração respeitosa, sem histerias.

Depois de ter saltado entre géneros musicais no novo álbum (ou nos anteriores), em 2011, este ano o duo lisboeta salta de palco em palco: recentemente passou pelos de Estarreja ou Istambul, em breve chega aos de Toronto ou Vila Real. Todos esses destinos recebem um pouco da cidade que dá nome ao disco, seja pelas imagens projetadas durante a atuação, com vários recantos da capital (e não os mais óbvios, à semelhança da música), seja pelas canções que não apagam a origem de quem as assina. Canções como "Esse Olhar que Era Só Teu", onde as heranças do blues ou o jazz, presentes noutros temas dos Dead Combo, não são as mais evidentes. "O Bruno Almeida [realizador com que a banda colaborou] mostrou-nos um vídeo da Amália a cantar por cima de um ritmo africano. Inspirámo-nos nele e saiu isto, que é basicamente um fado", explicou Tó Trips antes de tocar um dos temas mais contemplativos e arrepiantes de "Lisboa Mulata".

Canções com histórias

Se em "Esse Olhar que Era Só Teu" - canção que transborda saudade, começando pelo título - a tradição lisboeta falou mais alto, noutras a "mulata" soltou o lado mais gingão do "gato pingado" e do "gangster" (a descrição é dos próprios Tó Trips e Pedro Gonçalves, por isso quem somos nós para os contradizer?).
A faixa que dá nome ao disco, das mais dançáveis que os Dead Combo têm na sua discografia, foi um bom exemplo, como o foram "Blues da Tanga" ou "Cowboy's Cure for Jah". Esta última, que resultou de uma intrincada tapeçaria de loops gravados ao vivo, "tem influência da música do pessoal que costuma andar pela zona do Adamastor: dub e cenas assim", revelou Tó Trips. A metade mais faladora da dupla contou ainda que essa zona inspirou outro tema do novo disco, "Anadamastor": "Tem a ver com uma amiga nossa, chamada Ana, que trabalha num café chamado Adamastor. É fácil".

Além de apresentar quase todas as canções da noite, Trips manteve-se a dedilhar a sua guitarra - a guitarra mulata, que acabou por decidir o rumo do disco - e a bater o pé, de forma aparentemente incansável, vincando o compasso dos temas. Mais contido nas palavras, Pedro Gonçalves não foi tão restritivo nos instrumentos, alternando a guitarra com a escaleta, o contrabaixo ou o kazoo. A vertente cénica minimalista - com um palco que não precisou de mais do que ramos de flores e grafonolas - garantiu que as atenções se centrassem nos músicos.

A mulata e as outras

A recusa de aparato visual ajudou a que os pormenores sonoros ganhassem destaque. O inconfundível assobio de um amolador, logo ao início da atuação, valeu por mais do que mil imagens na sugestão de uma certa Lisboa. Outro assobio, o de Vasco Santana no filme "O Pátio das Cantigas", foi o ponto de partida para "O Assobio (Canção do Avô)", um dos temas mais antigos dos Dead Combo recordados no concerto - talvez porque "o assobio está em vias de extinção", salientou Tó Trips.

"Rodada" ou "Miúdos a roubar Maçãs" contaram-se entre outras recordações pré-"Lisboa Mulata", assim como uma versão de "Temptation", de Tom Waits, ou "Lusitânia Playboys", canção sobre "dois gajos do jazz, armados em campeões, que, por causa de umas miúdas, acabaram a levar chapadas de uns marinheiros", confidenciou o guitarrista. "Dois gajos do jazz" ou, talvez, um "gato pingado" e um "gangster". Ou, como ouvimos dois espetadores franceses a comentar à saída, "personagens de Tim Burton com qualquer coisa de Brecht". Seja como for, em vez de apenas lusitanos, estes playboys são cada vez mais globais.

@Gonçalo Sá

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