Em entrevista à agência Lusa no Café-Concerto Francisco Beja, na Escola Superior de Música e Artes do Espetáculo (ESMAE), no Porto, em que dá aulas, Burmester conta como redescobriu o poder hipnótico desta obra de Johann Sebastian Bach, durante arrumações em casa.
“Em casa, às vezes acontece pegar em partituras que já toquei. (...) Nunca mais tinha pensado na obra, nem sequer tocado, nestes anos todos. Quase parece querer dizer que ficou alguma coisa, não digo trauma, lá atrás que me fez dizer: ‘nesta não vais pegar’”, conta.
Agora, afirma, sabe “o que ficou lá atrás”.
“É uma obra que, ao vivo, é extremamente difícil. Implica concentração imensa, e apresenta dificuldades técnicas muito específicas e fora do normal. Há 30 anos, fiz vários concertos com ela, e não devo ter ficado totalmente satisfeito. Devo ter dito: ‘agora, não pego mais nisto’. Digo isto porque agora, que as fiz outra vez já cinco vezes, acontece-me a mesma coisa”, revela.
O pianista de 60 anos tem apresentado o disco lançado pela Artway Next, em Sintra, Porto, Vila do Conde e Piódão, e os cinco concertos que já deu foram todos “diferentes”, sem ficar satisfeito com nenhuma das prestações, tendo mais algumas previstas para o ano, e pensadas também apresentações no estrangeiro.
Se “só no Além” planeia voltar a esta partitura, certo é que a obra “é tão quase hipnótica” que o deixou ‘agarrado’ de novo, ainda para mais “como homenagem” a um homem que admira, como pianista mas sobretudo como pensador, Glenn Gould, que fez precisamente esta dupla gravação com tanto tempo de permeio.
“Quando descobri Glenn Gould, o seu pensamento, marcou-me bastante. Regravar é também uma homenagem. As pessoas mais novas na minha área, se calhar, nem sabem quem ele foi. É uma forma de chamar a atenção para um homem que continua a ser atual, na maneira como se questiona e se posiciona em relação à interpretação, de forma de certa maneira provocatória. Ele dizia que as partituras posavam para ele e pintava-as como achava. Punha-se ao mesmo nível do compositor, algo que, confesso, não consigo fazer. Ele fazia, com grande coragem, frontalidade e inteligência”, comenta.
Se com 20 e poucos anos sentiu a postura de Gould “como uma revelação”, esse disco de 1989 tem “muitas influências” do pianista canadiano, e, sem ouvir a primeira gravação, pôs-se a pergunta: “Qual é a diferença entre mim hoje e o eu de há 30 anos?”.
“Uma maneira relativamente simples de tirar isso a limpo é olhar para uma mesma obra anos depois. (...) Confesso que tinha algum receio. Foi com algum alívio que descobri que [as gravações] estavam diferentes, que era o que me interessava”, analisa.
Com tantas gravações que ficam registadas para a posteridade, além de acessíveis em poucos segundos pela Internet, dantes “perdia-se o rasto das coisas”, o que significa que hoje se vai “acumulando uma memória que, por um lado, é um peso imenso numa profissão que interpreta obras”, ajudando, por outro a cristalizar Bach como um “vulto na história da Humanidade que é impossível desaparecer”, a par de Shakespeare ou Einstein, considera.
Quanto às questões técnicas dessa obra publicada em 1741, consistindo em uma ária e 30 variações, a “mais complexa” torna-se simples de explicar na boca de Burmester.
“A obra é escrita originalmente para um cravo com dois teclados, o que significa que as mãos andam por todo o teclado, uma para ali, a outra dali para aqui. Quando transpomos para um só teclado, as mãos esbarram-se constantemente. Num piano, passo uma por trás, encolho um dedo para passar a outra...”, simplifica.
Natural do Porto, Pedro Burmester começou a estudar piano aos sete anos e aos dez iniciou a sua carreira concertística.
Durante dez anos foi aluno da pianista Helena Sá e Costa, uma das mais destacadas intérpretes de Mozart a nível mundial, que viu a sua atividade docente reconhecida pela Academia de Verão do Festival de Salzburgo, onde ministrou 'masterclasses'.
Burmester terminou o Curso Superior de Piano no Conservatório do Porto com 20 valores, em 1981. Estudou ainda com Sequeira Costa, Leon Fleisher e Dmitry Paperno nos Estados Unidos, onde, no Concurso Van Cliburn, recebeu o Prémio Especial do Júri. Participou em 'masterclasses' de Jorg Demus, Aldo Ciccolini, Karl Engel, Vladimir Ashkenazy, Tatjana Nikolaiewa e Elisabeth Leonskaja.
Em 1983 foi segundo classificado do Concurso Internacional Vianna da Motta, em Portugal, numa edição em que não houve vencedor.
Além da música erudita fez incursões no jazz, tendo gravado e atuado com os pianistas Mário Laginha e Bernardo Sassetti.
Ao longo deste verão, Pedro Burmester e Mário Laginha têm vindo a “celebrar a Liberdade”, num recital conjunto assente em arranjos para piano de canções de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto, assinados por Laginha, Bernardo Sassetti e João Vasco, num programa em que estreiam uma nova obra de Luís Tinoco, "Out of Order".
Depois de Águeda, Vila Nova de Famalicão, Espinho, Coimbra, Vila Nova de Cerveira e Porto, como etapas dessa digressão iniciada em abril, nos 50 anos da queda da ditadura, o caminho termina na próxima sexta-feira, 13 de dezembro, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.
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