Como bom contador de histórias que é, o rapper aproveitou para dividir com o SAPO Mag um momento especial que viveu ao exibir no Teatro Municipal do Porto o espetáculo que se tornou um filme na Netflix. Também recordou o importante período que viveu cá ao ser convidado para uma série de atividades do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra).

Ao falar com amor sobre a artista e amiga Capicua, o rapper lembrou o quanto a ligação entre Brasil e Portugal é “a coisa mais bonita que nós temos”, sabendo que “se encontrar em algum lugar do meio do caminho” ajuda a “compreender que tipo de passo a gente pode dar junto”.

Além das referências que permeiam entre a leveza da poesia e a adrenalina da realidade, Emicida promete entregar ao público lusitano todo o seu entusiasmo amoroso, sem esquecer da luta que o Brasil enfrenta neste momento com Bolsonaro.

Stefani Costa - Como está?
Emicida - Estou cansado, mas estou bem. Tá meio escuro a câmera. Ainda bem, porque se não você ia ver com detalhes e seria pior (risos).

Atua em Portugal com "AmarElo", disco editado em 2019 e que infelizmente não foi apresentado antes devido à pandemia. É uma digressão que, além do concerto, originou um filme de grande audiência na Netflix. Qual a sua expectativa de voltar a palcos portugueses para apresentar o concerto num teatro?
O Municipal e o centro de São Paulo, aquela região em específico, já foi uma região muito nobre. Hoje, infelizmente, por causa do descaso do poder público, o centro de São Paulo está praticamente abandonado. Você pergunta para as pessoas e elas não sabem nem quem é o prefeito. É uma situação muito bizarra. Porém, continua a ser simbólico. De fato, é uma das salas de espetáculo mais lindas do país, com uma história maravilhosa. E poder levar um espetáculo como aquele, naquele contexto, que continua sendo esse ainda... Esse contexto social e político do Brasil - com aquela mensagem e naquele momento - cria uma série de coisas. Ser um artista como eu (com a história do Laboratório Fantasma e uma trajetória como a nossa) acaba por trazer muitos significados para além do espetáculo, que é maravilhoso.

Há uma história muito boa para partilhar...
No ano passado eu tive a oportunidade de ficar três meses em Portugal. Essa ida foi incrível. Eu fiquei à convite do CES (Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra), participando de alguns encontros, aulas, palestras, debates e seminários na Universidade de Coimbra com o pessoal de sociologia, o Boaventura (Sousa e Santos), Tatiana (Moura)... Enfim, uma outra família que eu acabei criando aí desse lado também. E você vai entrando na rotina, né? Antes da gente começar, você estava falando desse negócio de voltar para os festivais. E olha que barato louco: a primeira coisa, quando você percebe a realidade da pandemia, é o choque. Como assim a gente vai ficar em casa agora? O que vai ser da minha vida? É muita instabilidade se sobrepondo. Então, você tem uma doença na qual sabe-se muito pouco, um nível de contágio subindo muito rápido. E meu emprego? Como vai ser o meu aluguel? Como é que eu vou colocar comida na minha mesa? Essa nova rotina também vai, a partir de um certo tempo, fazer você começar a lidar com essa ‘parada’. Aí você acorda, não sai mais na rua, só vai até a sua janela, resolve todas as suas coisas dentro de casa - porque a reclusão é uma realidade - e você entra nessa nova rotina, que vira a sua rotina de fato. Quando eu estava em Portugal no ano passado, virou minha rotina fazer as colaborações com o pessoal da faculdade. E como eu levei minha família também, no resto do tempo eu estava sendo só pai, saca? (risos). Fazendo compras, levando as crianças para tomar um sorvete, descendo para o parque... E de alguma maneira, não que eu tenha esquecido de quem eu era, mas eu entrei numa rotina que era muito diferente da maior parte da minha, que é uma rotina de concerto, de ensaio e de estúdio. Eu estava tratando de outras coisas, de gravações e tal, mas a rotina em si foi me absorvendo de tal maneira que a gente fez uma exibição do "AmarElo" no Teatro Municipal do Porto.
Eu estava tão preso na minha rotina das coisas da faculdade e dos estudos, que nem caiu a ficha de que, tipo assim, mano: era a primeira vez que eu iria assistir o filme fora da minha casa. Porque quando o filme saiu, a gente já estava em pandemia. E a internet é um lugar louco, né? Porque você tem essa repercussão maravilhosa, muita gente falando, muita gente falando bem, elogiando o filme ao redor do mundo. Só que, como eu não fico muito nas redes sociais, com o tempo isso também vai virando parte da rotina. E eu não estava mais vendo as notícias, sobre o filme em especial. Eu fui para o teatro. Tanto que o Tiago que trabalha comigo (que é daí do Porto), falou “vou passar aí para a gente ir de carro.” Aí eu falei “não precisa ir de carro, eu vou a pé, eu tô aqui do lado”. Aí ele falou “não, mas vai ter muita gente lá.” E eu disse “que muita gente, cara?! É só um filme!” No entanto, ele insistiu e eu fui de carro. Quando eu cheguei, tinha um monte de gente na praça já. Estava lotado. A gente teve que transferir a exibição para uma sala maior. E eu fiquei impressionado com aquilo. E aí começou a voltar essa coisa do ‘eita, mano! na verdade essa é a minha rotina de verdade!’, saca? A do concerto, a do espetáculo... Aí o Tiago foi estacionar o carro e eu fiquei olhando aquela multidão. E quando começou a passar o filme, eu me emocionei e comecei a chorar. O Tiago começou a chorar. Porque a gente nunca tinha visto o filme junto. E as pessoas estavam cantando o filme. Não somente as músicas, elas sabiam as falas. Ou seja, elas assistiram esse filme muitas vezes. Foi muito especial isso porque, enquanto artista, a pandemia criou uma suspensão da nossa profissão de maneira que a gente se viu numa grande encruzilhada. Em uma ‘sinuca de bico’, vamos dizer assim. É que a gente não é contador de views, entende? Eu não faço música para contabilizar se eu tenho mais seguidores que fulano, se eu tenho mais likes que ciclano. Eu faço música por causa de uma outra coisa. Eu faço música porque eu gosto que uma mensagem ‘da hora’ chegue em uma pessoa, encontre essa pessoa em um momento onde ela precisava daquela mensagem. E assim, a gente cria um elo muito bonito. E o momento do espetáculo, quando a gente se encontra, é a hora onde todo esse sentimento explode. E tudo isso foi suspenso. Então, foi muito emocionante vivenciar isso no Porto no ano passado. E me fez também ter uma gratidão imensa, tanto pelo Porto, quanto por Coimbra. E isso acaba se estendendo para Portugal como um todo, pois eu fui super acolhido aí durante esse período.

Falou sobre mensagem. O título "AmarElo" vem de um grande poeta brasileiro em que você se inspirou: Paulo Leminski.
Sabe que eu não tenho muito o hábito de ler poesia especificamente? Isso foi uma coisa que eu comecei a fazer nos últimos tempos. Em geral, eu achava que... Eu não sei nem o que eu achava... Mas, o livro de poesia por si só não me prendia. Eu gosto muito de ler sobre filosofia e história, saca? Minha mulher fala ‘cara, vai ler uma ficção às vezes, vai’. Antes de dormir você vai ler a história da renascença, saca? Aí, tipo assim, sua cabeça não vai descansar nunca quando você lê essas ‘paradas’. Você tem que ler um Romeu e Julieta, entendeu?

Emicida
créditos: Wendy Andrade

Acho que lhe dei um livro na primeira vez que esteve aqui [em Portugal]. Foi o "Ubuntu", do Desmond Tutu.
Mano, esse livro é um dos meus livros que eu guardo com maior carinho, viu? Obrigado demais. É sério. Eu tenho uma prateleira... As minhas coisas estão em caixas porque eu vou me mudar em breve, e esse livro é um que eu não coloco em caixas, sabia?

Olha só, que bom saber!
Porque eu tenho medo de rasurar e tal. Eu tenho uma caixinha de madeira, que é mais cuidadosa, onde eu coloco os livros raros. E esse aí não é um ‘livro raro’, mas é um livro especial, porque ele tem umas citações e umas frases muito boas. Eu nem conhecia tanto o Desmond Tutu antes de você me dar esse livro, sabia?

Que bom, influenciei em alguma coisa.
Eu conhecia de nome, conhecia um pouco da história, muito superficialmente. Você me deu o livro e eu voltei lendo ele. Às vezes eu tô, tipo assim, sei lá. Quando eu estou sem esperança no mundo, eu vou lá, pego ele, e abro aleatoriamente. Porque ele tem umas citações que são muito bonitas.

O que também tem tudo a ver consigo. Com a mensagem que você traz.
Eu nem fazia essa associação. Na hora que eu vi, que eu comecei a ler, que eu comecei a falar ‘caramba, eu me identifico demais com isso’, entende? E com o Leminski foi uma coisa meio parecida. Eu comecei a ir ‘cavucando’ as coisas dele. Um pouco antes, eu fiz a produção executiva de um grupo de rap do Brasil que se chama Inquérito. E o disco do Inquérito... O Renan que me apresentou o poema do Leminski. Esse [AmarElo] em especial. Ele falou “eu vou por o nome do disco de ‘AmarElo’”. Foi quase o nome do disco do Inquérito (risos). E eu fiquei com esse nome na cabeça. Fiquei viajando nisso. Aí eu falei “se você não usar, eu vou usar” (risos). No final das contas, o disco do Inquérito foi batizado de ‘Corpo e Alma’, que também foi um nome excelente, pois ele abraça tudo do projeto. E eu fiquei feliz porque me sobrou um nome muito foda. E aí eu peguei o nome e falei pro Renan “mano, posso usar?” e ele respondeu "demorou! Não é meu, é do Leminski.” Isso acabou trazendo uma série de significados. Tem essa coisa da conexão, da cor. Essa coisa de fazer as pessoas olharem para a poesia brasileira também, né? No final das contas, eu acabei mergulhando em tudo de novo. E agora, eu estou lendo um monte de coisas. Manuel Bandeira, Manoel Rosa, o próprio Leminski, Mário de Andrade - que tem uns poemas gigantes também. Eu mergulhei na poesia de um jeito que eu não saí até hoje. E quem meio que ‘destravou’ toda a leitura de poesia para mim foi o Leminski.

Emicida

Maravilhoso. Eu também gosto muito da obra dele.
Até Curitiba... Eu passei a olhar Curitiba de outro jeito! (risos). Por causa do Leminski! Eu não sei você, mas eu fico olhando e penso “será que o Leminski passou por aqui?!”, saca?!

Falando do concerto em Lisboa, mais uma vez a Capicua estará com você, além do rapper Papillon.
A Capicua é uma grande irmã que eu tenho para a vida, sabe? Desde a primeira vez que a gente se encontrou, ela foi uma pessoa que se esforçou muito para me oferecer Portugal. E eu acho isso muito generoso e muito gentil da parte dela. Ela queria muito que a gente se sentisse em casa, abraçado. E que, de alguma maneira, nossa cultura se conectasse e a gente percebesse que era um só. Eu tenho um amor muito grande por ela. Quando ela vem para o Brasil também, eu faço esse esforço, e a gente fica nessa troca. Às vezes eu chamo isso de “uma guerra de gentileza”, sabe? Aí ela vem para cá e eu também quero dar o Brasil inteiro para ela. Tipo assim, “isso aqui é seu. O que você quer?” (risos). E eu acho que essa é a parte mais bonita da conexão que nós temos enquanto brasileiros e portugueses. Se encontrar em algum lugar do meio do caminho e compreender que tipo de passo a gente pode dar junto. Poder fazer música com ela, poder estar com ela no espetáculo, poder conversar muito... Porque a gente fala muito sobre história, sociologia, poesia, teatro... Então poder estar com ela é um aprendizado. Vai ser muito bom poder fazer isso em Lisboa mais uma vez. E o Papi [Papillon] também é um irmão que a música me deu, que Portugal me apresentou. A gente conseguiu ir para um estúdio e fazer música juntos. A gente se apresentou no NOS Alive aquela vez, fizemos uma live juntos durante o finalzinho da reclusão mais severa (quando eu ainda estava em Coimbra) e agora a gente vai fazer pela segunda vez mais um showzão fora de um festival, em um palco. O Papi também é um dos caras mais talentosos que eu conheço, mano. Ele e os meninos da GROGNation lançaram umas coisas com o Sam The Kid, nesses últimos meses, e é sempre uma aula ouvi-lo, saca? Tipo, é um absurdo. É inspirador demais.
Acho que essa turnê está me trazendo isso, né? Eu tenho uma coisa parecida com outra coisa que você falou também. Eu gosto muito de ir conhecendo esses artistas que, às vezes, não estão no topo do mainstream. Mas, eles estão em um momento muito bacana da trajetória... Com sangue no olho... Com uma vontade muito grande de fazer música, expandindo o que a gente entende por música boa. E o Papi é um desses caras.

Eu dei muita atenção para o rap aqui em Portugal a partir do projeto Língua Franca. E nesse último Rock in Rio Lisboa, tentei dedicar-me ao palco do rap. Na edição deste ano houve uma iniciativa muito boa de mostrar os grupos do bairro de Chelas, local onde é realizado o evento, e das periferias daqui. E aí conheci vários nomes, como G-Fema, Malabá ou Ary Rafeiro.
Tem uma cena muito foda aí, né? Olha aí o que o Wet Bed Gang tem feito. A Nenny, o próprio Sam The Kid, o GROGNation... Tem gente daí, de Angola, de Cabo Verde que acaba passando por Portugal de alguma maneira. Eu acho que o Língua Franca funcionou como um grande convite. A gente deveria se conectar mais. Eu acho que a gente ainda está deficitário nessa conexão. Porém, fico feliz que ela esteja acontecendo com cada vez mais intensidade e que a gente tenha tido a oportunidade de colaborar com a construção dessa ponte.

“Língua Franca”

A última vez que eu vi a Capicua foi na Festa do Avante!, o festival organizado pelo Partido Comunista Português. Ela atuou com o projeto infantil Mão Verde II. Foi muito bonito!
Eu sei, eu já toquei na Festa do Avante!. A gente tocou com o Língua Franca e foi super emocionante. Foi um dos shows mais bonitos que a gente já fez. Eu adoraria voltar e montar um espetáculo inteiro para isso também… Porque, é o seguinte: poder tocar no aniversário do Partido Comunista Português (PCP), tinha uma atmosfera de sonho, de construir um mundo melhor. Ela [a festa] é muito necessária. Eu falo isso para as pessoas várias vezes. Houve momentos na história que o marxismo foi importante. Hoje, é um momento na história onde o marxismo é urgente, sacou? A gente precisa pensar a sociedade e considerar sim a contribuição do Karl Marx, porque é de um valor inestimável.

Nós estamos próximos das eleições no Brasil e não tem como fugir desse tema. No início de 2022, fiz uma entrevista com o Daniel Ganjaman e ele diz que essa é a eleição mais importante da vida dele e de toda a geração. Como estão os seus sentimentos nesta reta final? Deixe uma mensagem não só para os portugueses, mas também para os brasileiros, já que Lisboa se tornou o maior colégio eleitoral fora do Brasil.
Eu acredito que, em geral, as eleições tendem a ser sobre projetos. Uma determinada visão de mundo, gerência e administração... Uma concepção de sociedade. Isso seria uma eleição ‘normal’. Só que, em 2022, no Brasil, a gente não está falando de um momento normal ou de uma eleição ‘normal’. Infelizmente, parte da imprensa naturalizou e permitiu que fosse normalizada uma série de ataques à democracia e aos direitos humanos. E esse monstro do autoritarismo acabou se transformando em algo muito maior, muito presente. Essa repressão, inclusive, tem se voltado até mesmo contra a imprensa no Brasil. Mesmo ela tendo sido partícipe dessa construção muitas vezes. Quando eu digo que a gente não está falando de uma eleição normal, é porque eu acho que essa eleição (e alguém já disse isso, algo com o qual eu concordo muito) é um grande plebiscito a respeito do que a gente quer ser. A gente quer construir, plantar esperança no presente para que a gente tenha futuro, ou a gente quer semear ódio e assistir destruição? É uma deterioração de tudo de positivo que a gente já conseguiu construir, saca? Porque existem coisas positivas na realidade do Brasil. Esse não é o momento na qual elas estão mais em evidência. Sabe aquela coisa que o Caetano Veloso canta em ‘Sampa’: “da força, da grana que ergue e destrói coisas belas”? Esses paradoxos fazem parte da nossa vida. Eu acredito que 2022 é o momento no qual a sociedade brasileira precisa mostrar que ela é melhor do que o Bolsonaro. A gente pode ser mais do que Bolsonaro e mais do que o bolsonarismo. Pois é o que tem que ser vencido para além das eleições, isso é uma forma de pensar. É um outro nome para a imbecilidade maldosa, para a perversidade irresponsável. Para mim, é isso que o bolsonarismo significa. Concordo com o Ganja, acho que nunca foi tão importante a gente estimular mesmo o voto. E eu acredito que a gente precisa fazer isso daí no primeiro turno, de uma forma acachapante, para não restar dúvida nenhuma. Se o Bolsonaro ficar para o segundo turno, o que vai acontecer é o plantio de uma crise, de uma estabilidade, escalada de violência... Violência armada, que é o que ele incentiva. A gente não sabe o tamanho e a proporção em que essa tragédia pode acontecer... Isso precisa ser resolvido no primeiro turno, e, espero que, em breve, a gente possa voltar a tratar as eleições como se elas fossem somente sobre projetos.

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