Gravado com o produtor franco-belga Jean Lamoot, o álbum é um verdadeiro abraço do músico a cada um de nós, mas também um registo histórico de que “houve artistas brasileiros que se posicionaram frontalmente contra a expansão do neofascismo no Brasil”.

A 16 dias da eleição mais importante da história brasileira, Chico César adianta-se para lembrar que não estamos sozinhos nessa travessia difícil, porém decisiva. Entre as canções inéditas do novo álbum está ‘Bolsominios’, single que faz parte de um projeto potente e caloroso, editado nos icónicos Studios Ferber, em Paris.

Disponível a partir desta quinta-feira, 15 de setembro, nas principais plataformas digitais, a faixa antecede a estreia do álbum, com lançamento marcado para dia 23 pela editora Zamora.

"Essa é uma canção em defesa da fé cristã e uma crítica a um grupo político de inspiração fascista que sequestrou de modo bastante hipócrita parte significativa das igrejas e o rebanho que professa essa fé. É um reggae quase punk de protesto, ao modo de Peter Tosh ou The Clash. Os verdadeiros religiosos sabem que a crítica não se dirige a eles, mas sim aos vendilhões do templo, gente que cultua o ‘deus dinheiro’, as armas, a terra plana, a negação da ciência, a misoginia, o racismo, a perseguição à diversidade sexual", explica.

Chico César
Chico César créditos: Stefani Costa/Hedflow/SAPO Mag

A outra boa nova é que Chico César está de malas feitas para uma digressão pela Europa. O músico atua no dia 29 de setembro no Capitólio, em Lisboa, dias 23 e 24 no MIMO Festival (Porto) e depois segue viagem rumo a Espanha e França.

Entretanto, antes de regressar a Portugal para cantar a diáspora africana e a resistência dos povos latino-americanos, Chico César conversou com o SAPO Mag e partilhou expectativas sobre o novo ciclo criativo.

SAPO Mag - Como é estar ‘Vestido de amor’ em tempos de tanto ódio?
Chico César - Stefani, muita gratidão pela oportunidade de ter essa conversa. ‘Vestido de amor’ é o sentimento de estarmos preenchidos de dentro para fora. Cobertos internamente de algo que nos proteja desse mal. E mais do que nos proteger, que nos ajude a receber o outro, acolher o outro. Isso é o amor. Se nós estivermos vestidos com uma armadura, nós vamos repelir o outro, né? Mas, quando nos vestimos de amor, somos capazes de acolher o próximo. Trazemos o outro para perto, para dentro e para junto de nós.

Chico César
Chico César créditos: Ana Lefaux

E como foi realizar a produção desse disco fora do Brasil? Como se deu o convite do produtor Jean Lamoot e como foi gravar com grandes nomes da música africana, como Ray Lema (Mali) e Salif Keïta (Congo)?
Desde antes da pandemia, eu já havia iniciado uma conversa com Sébastien Zamora, que é proprietário do selo Zamora, em Paris. Ele me fez um convite para gravar um disco na França, com um produtor francês e com músicos africanos, brasileiros, franceses, europeus e quem mais estivesse por ali. Mas, aí veio a pandemia. Nós ficámos todos impossibilitados de viajar. Então eu fiquei praticamente um ano na minha casa. A pandemia começou em março, e, só em fevereiro, quando deu uma aliviada, apareceu uma viagem com shows no Uruguai. Durante o isolamento eu tinha composto muitas coisas. Fui para o Uruguai, continuei compondo, e, ao invés de fazer dois shows, eu acabei ficando por lá por 3 meses compondo e escrevendo mais. Era um lugar onde havia poucas pessoas, uma população pequena para um território em que, para encontrar alguém, é preciso se locomover. Foi um lugar ótimo para se estar durante uma pandemia.
Em junho, apareceu essa oportunidade de ir para a França. O país estava mais aberto, as pessoas já tinham tomado duas doses da vacina. Houve um trabalho do selo Zamora junto ao Ministério do Interior, do Trabalho e da Cultura para que eu pudesse entrar lá naquele momento. Ainda não era algo comum sair da América Latina para entrar na França. Mas, eles conseguiram e finalmente consegui ir direto para Carpentras, no sul da França. Lá encontrei com o Jean Lamoot, o produtor do disco (que eu ainda não conhecia). Logo depois, chegaram também os músicos. Alguns brasileiros, outros franceses. E assim começámos o trabalho em um grande estúdio, chamado Vegas. Eu fui mostrando as músicas e a gente já foi tocando... E o Jean já gravando.
Ficamos uns dez dias em Carpentras e só depois demos uma pausa. Fomos para Paris terminar o disco nos Studios Ferber, que são bem tradicionais na França. E a experiência foi ótima porque eu pude encontrar com o Salif Keïta, que foi para cantar uma música que, quando eu compus aqui, nesta cozinha, aqui na minha casa, eu já pensei: “Puxa, essa é uma música para cantar junto com o Salif Keita”. É uma canção que traz um modo da música do Mali.
Eu também tenho uma grande ligação com Ray Lema, com quem já fiz shows no Brasil, pela Europa e pela África. O Ray sempre falou para mim como há pontos em comum entre a música do nordeste e a música africana. A rumba congolesa, por exemplo, ele vê como uma irmã mais velha do forró brasileiro, nordestino. Ele considera Luiz Gonzaga o artista mais africano do Brasil, mais que todos os outros… Mais do que (Gilberto) Gil, João Bosco, Djavan, Jorge Ben e eu. O Lema falou que o jeito de Luiz Gonzaga compor e cantar é muito semelhante aos artistas dos anos 50 no Congo. É também por isso que eu o chamei para cantar comigo esse coco nordestino que remete também à rumba congolesa.
Quando eles vieram, Salif e Ray, cada um reescreveu em sua própria língua a parte que iria cantar. Isso também dá um caráter mais africano ao disco. Além de termos a presença do Ray Lama tocando piano, também trouxemos a banda dele para tocar nessa música. E temos ainda a presença da Kora, a harpa africana, que é uma espécie de Berimbau, só que com muitas cordas, todas elas afinadas.

Chico César
Chico César créditos: Ana Lefaux

Esses ritmos africanos sempre estiveram presentes nos seus discos. Do primeiro álbum aos dias atuais. Mas refere que este projeto é mais voltado para a diáspora de África pelo mundo. Qual a importância de se fazer essa ponte? É a de ajudar a espalhar e abrir esses caminhos rumo à cultura africana, que, muitas vezes, é desacreditada e até rebaixada pelo Ocidente?
Eu acho que esse afropessimismo (essa visão e associação da África com as coisas ruins, as coisas que não dão certo, como se fosse um povo ou povos que não conseguem se autogestionar) faz parte de um projeto político de desacreditar as nossas potências. E não apenas aos africanos que vivem na África, mas toda a diáspora. É um projeto para dizer que nós precisamos ser tutorados de certa forma. E isso é uma mentira. Nós temos uma contribuição enorme para o mundo. No campo da música, é inegável. Por isso que no disco eu coloco ali, lado a lado, na música ‘Primeira Vista’, Prince e Salif Keita. Porque quando ouvi ambos pela primeira vez, eu dancei. Para mim, eles têm a mesma importância. Eles estão no mesmo nível, no mesmo patamar. Não haveria música pop do mundo se não houvesse música africana. Como se não houvesse uma apropriação, inclusive, do mundo sobre a música africana e das diásporas africanas. E o que eu coloco aqui não é para reclamar... É para celebrar, olhar com alegria e abraçar. Através desse abraço, atravessar as barreiras do preconceito para conseguirmos enxergar as belezas e as potencialidades. Eu vejo a África mais como potência e lugar de referência para o planeta do que como um lugar com problemas.

Como se tem se relacionado com a cena de Portugal? Notei que gosta muito da literatura lusitana. Mas, em relação aos músicos, quais são as suas referências? Há alguém da ‘terrinha’ com quem gostaria de trabalhar?
Eu tenho a felicidade de ter aparecido para a música em um momento em que havia bastante fervor. Fervilhava uma coisa multicultural, né? Eu pude me apresentar na Expo [98]. Eu tenho uma relação com Né Ladeiras, Filipa Pais, Rui Veloso, que são artistas da minha geração - alguns até antes - e tive a oportunidade de tocar com esses artistas. De vez em quando eu encontro com alguns deles. Na Galiza, um país irmão, os galegos se vêem como a matriz da língua portuguesa. Inclusive, eles têm um zelo e lutam para considerar essa língua como um patrimônio. Lá nos encontramos em festivais. Agora, com a pandemia, estivemos todos afastados. Essa será a primeira vez que eu regresso depois de um tempo sem ir a Portugal. E espero poder encontrar as novas gerações, pois sei que há uma produção cultural recente e vibrante… Sempre haverá, principalmente porque Portugal vive também um momento político e cultural bastante rico. Então certamente há gente nova aparecendo por aí… E eu quero conhecer.

A sua primeira atuação em Portugal foi na abertura de um concerto de Daniela Mercury no Coliseu dos Recreios, certo?
Já cheguei ‘sentando na janelinha’, como dizemos aqui! (risos). Daniela ia gravar a música ‘A primeira vista’. Ela já tinha escutado, mas acho que naquele momento ela ainda não havia gravado, ou tinha acabado de gravar, não me recordo bem. Assim, pude abrir os concertos dela nos Coliseus (Lisboa e Porto). E foi uma oportunidade maravilhosa. Eu estava sendo apresentado da melhor forma ao público, aos meus colegas e à imprensa portuguesa. Daniela teve e tem um papel muito importante em mostrar essa renovação da música brasileira para o mundo nos anos 90.

No seu novo álbum há uma canção que gerou alguma polémica, ‘Bolsominions’. A primeira vez que divulgou esse tema foi em 2020, certo?
Foi, acho que bem no começo. Foi antes da pandemia. E depois ocorreram as eleições [municipais] e tal. Quando eu publiquei a música, não houve nenhuma polêmica. Depois, quando as eleições estavam próximas, uma vereadora neopentecostal quis galvanizar o público, o eleitor evangélico. Começou a divulgar e a fazer protesto dizendo “Chico César está agredindo a comunidade evangélica”. Ela conseguiu aprovar um voto de censura na Câmara de Vereadores de João Pessoa, que é a capital do meu Estado [Paraíba], contra mim. Mas, aí eu pensei: “Um voto de censura não vai me calar”. O curioso é a edilidade da capital paraibana, que perdeu seu tempo aprovando uma coisa como essa. Obviamente que eu nunca vou deixar de cantar a música porque ela me deu um voto de censura. Então, eu resolvi gravá-la no álbum. Inclusive, para deixar registrado, pois nós vivemos um momento histórico bastante radical e doloroso. Acredito que daqui uns vinte, trinta anos, quando as pessoas repensarem e começarem a estudar esse período, elas vão encontrar uma canção chamada ‘Bolsominions’ que diz: “Houve artistas brasileiros que se posicionaram frontalmente contra a expansão do neofascismo no Brasil”.

Chico César
Chico César créditos: Ana Lefaux

Fui pesquisar o seu nome numa plataforma de vídeos e acabei por encontrar o programa ‘Prosa e Poesia’, da Sesctv. No episódio, Chico Buarque aparece a falar sobre como ele cria as suas composições e canções. A peça foi gravada, mais ou menos, há dois anos. De repente, surge Roberto Alvim [ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro que recitou Joseph Goebbels, ministro da Propaganda na Alemanha nazi, na rede nacional] a declamar Chico Buarque, a falar do relacionamento dos dois e a recitar excertos do livro ‘Leite Derramado’. Não parece que estamos a viver num mundo paralelo? Chamar os bolsonaristas de ‘Bolsominions’ até chega a ser carinhoso, não?
Viver na democracia pressupõe a existência da diferença. O fato de um determinado setor da sociedade ter se radicalizado e caminhado em direção à extrema-direita - a uma direita intolerante, machista, homofóbica, extremamente misógina, intolerante do ponto de vista religioso e contra as cotas - é uma reação a algo que, de certa forma, tem a ver com as políticas públicas que foram aparecendo ainda nos governos de Fernando Henrique Cardoso. Depois nos governos do PT, com Lula e Dilma. Essas políticas reconheceram grupos que antes eram silenciados, como os indígenas, os negros, as mulheres, os homossexuais, as pessoas trans... Com isso tudo, eles foram ganhando espaço na realidade brasileira, que é fruto do avanço da própria sociedade, mas que também tem a ver com as políticas públicas criadas. Tem um grupo que ficou bastante incomodado. E a gente vê como muitos homens tratam as mulheres hoje em dia. Matam, maltratam. Eles sempre fizeram isso, mas agora tem algo muito ligado com reação sobre algo que avançou, né? Esses setores que eu citei ganharam visibilidade e isso incomodou. No entanto, agora é o momento de reequilibrar o Brasil e as relações. Porque os negros não vão voltar para as senzalas, as mulheres não vão voltar para a cozinha e os homossexuais não vão voltar para o armário. A sociedade vai ter que se acostumar com a presença dessas pessoas. Há, inclusive, muitas lideranças - vereadores e deputados - que vêm desses lugares de fala... E essas vozes não serão silenciadas assim.

Durante essa digressão que fará por Portugal, Espanha e França, qual é a principal mensagem que quer deixar ao público?
A minha música transcende questões partidárias e eleitoreiras. As eleições são uma efeméride com a qual eu, como cidadão, dialogo. Mas, a minha música existe antes disso. E eu espero que ela exista depois disso também. Que ela sobreviva a tudo isso. Eu não vou aí para fazer campanha ou para educar as pessoas. A minha mensagem é de arte, de música. Eu vou vestido de amor. Eu quero celebrar com as pessoas a existência da nossa subjetividade. Às vezes se reivindica uma objetividade que, na verdade, é também um tipo de morte. A morte da subjetividade. E ela está na dança, na música, nas crianças, nos mais velhos e no ‘louco’. Então nós não podemos abrir mão dela. Sejamos velhos, crianças, loucos... Sejamos lúdicos. Ser lúdico é ser bastante subversivo num mundo que se fantasia de objetivo para enquadrar as pessoas.