A prolífica e bem-sucedida carreira de Woody Allen, vencedor de quatro Óscares, que está no Festival de Veneza com o seu 50.º filme, "Coup de chance" ("Golpe de sorte", em tradução literal), foi manchada pela denúncia de abuso sexual da sua filha adotiva.

Rodado na França com Lou de Laâge, Niels Schneider e Melvil Poupaud nos papeis principais, o filme é um drama amoroso a partir do casual reencontro de dois ex-colegas de turma no liceu.

O realizador e argumentista de 87 anos é considerado o inovador da comédia moderna e um mestre em dissecar as fobias e ansiedades do intelectual urbano. Nas últimas três décadas, porém, a vida privada do mais europeu dos cineastas americanos ganhou tantas manchetes como os seus filmes.

As acusações nunca comprovadas de apalpar sexualmente a sua filha adotiva, Dylan Farrow, quando ela tinha sete anos, prejudicaram a sua carreira e obrigaram o cineasta, que sempre negou os alegados abusos, a ficar na defensiva enquanto via as portas a fecharem-se para ele, sobretudo, no seguimento do movimento #MeToo no outono de 2017.

Nascido no Bronx a 1 de dezembro de 1935 e criado no Brooklyn, Allen Stewart trabalhou no circuito de "stand-up comedy" e escreveu para a televisão no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 antes de dar um salto para o mundo do cinema, onde as suas excentricidades e humor cativaram um exército de fiéis.

"Quando comecei, sonhava em ser Godard, Fellini, Truffaut ou Resnais. Juntamente com Bergman e Antonioni, foram os realizadores que me deram o desejo de fazer este trabalho", disse ele em 2014 à revista francesa Le Nouvel Observateur.

Com três Óscares como argumentista e um como realizador e 24 nomeações, também como ator, na longa carreira deste cineasta que faz praticamente um filme por ano, há títulos inesquecíveis como "Annie Hall", "Manhattan” , "Ana e as Suas Irmãs", "Match Point", "Blue Jasmine", "Meia-noite em Paris" ou "Crimes e Escapadelas".

Em 2002, ganhou o Prémio Príncipe das Astúrias das Artes, o que lhe abriu caminho para uma estreita relação com a Espanha e com Javier Bardem e Penélope Cruz, protagonistas com Scarlett Johansson de "Vicky Cristina Barcelona".

Escândalo

Woody Allen e Mia Farrow em "Ana e as Suas Irmãs"

Em 1992, a sua então parceira Mia Farrow, protagonista de 13 dos seus grandes filmes, como "Ana e as Suas Irmãs" - um dos maiores sucessos comerciais do cineasta -, denunciou-o após encontrar algumas fotografias no apartamento do cineasta nas quais a filha adotiva da atriz e do seu então marido André Previn, Soon-Yi, aparecia nua. A jovem, de origem coreana, tinha 21 anos, e o cineasta, 56. Eles casaram-se em 1997 e continuam juntos até hoje.

No meio da tempestuosa separação, Mia Farrow acusou-o de ter apalpado sexualmente a filha adotiva de ambos, Dylan, quando ela tinha 7 anos.

As investigações de duas agências de proteção da menores nunca foram capazes de provar as acusações contra Allen e, embora um juiz de Nova Iorque tenha considerado as alegações inconclusivas, em junho de 1993 concedeu a custódia de Dylan à mãe e restringiu os direitos de visita ao pai, a quem chamou de "egocêntrico, indigno de confiança e insensível".

Nas suas memórias, "A propósito de nada. Autobiografia.", nas quais discorre sobre este facto, o cineasta garante que, se estas acusações fossem verdadeiras, as autoridades nunca lhe teriam permitido adotar as suas duas filhas com a atual esposa.

Desde então, tem vivido na defensiva, apesar de, na sua autobiografia, afirmar que "como não acredita na vida após a morte, é indiferente se as pessoas se lembram de mim como cineasta ou como pedófilo".

"Caça às bruxas"

A campanha #MeToo contra o assédio sexual - alimentada pelas revelações do seu único filho biológico, o jornalista Ronan Farrow, sobre o poderoso produtor de cinema de Hollywood Harvey Weinstein, que cumpre pena de prisão - contribuiu para que vários atores renegassem o cineasta.

Em janeiro de 2018, Dylan Farrow deu a sua primeira entrevista na televisão, na qual descreveu o seu pai, entre lágrimas, como um mentiroso.

Allen respondeu, acusando a família da sua ex-companheira de "aproveitar cinicamente a oportunidade oferecida pelo movimento Time's Up para repetir esta acusação sem fundamento".

Ele foi criticado por dizer que se sentia "triste" por Weinstein e por falar de uma "atmosfera de caça às bruxas", em que "todo o tipo num escritório que pisca para uma mulher de repente tem que chamar um advogado para se defender".

Em 2018, a Amazon, que produziu alguns dos seus filmes, rompeu o contrato que havia assinado com o cineasta para fazer uma série. As duas partes chegaram um acordo amigável fora do tribunal.

Incapaz de encontrar financiamento nos EUA, Allen continuou a fazer filmes na Europa.

"Coup de chance" - uma sombria história de amor ambientada em Paris - é o primeiro filme de Allen rodado em francês, mas também pode ser o último.

"A minha ideia, em princípio, é não fazer mais filmes e concentrar-me na escrita", declarou o cineasta em entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia no ano passado.